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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

QUEBRANTO





Roteiro de Cinema
Um filme futurista brasileiro inspirado e transmutado da obra do escritor irlandês James Joyce.












QUEBRANTO




Titulagem (fundo negro)

Seqüência Abertura – Casa – Noite – (Leopoldo, Lucia, Sylvia, Nora)


Escuridão.

O rosto em detalhe das três mulheres.

Fundo escuro.

Leopoldo subindo as escadas:
- Quem são vocês? Falam se puderem! Quem são elas! Em nome da verdade, são reais ou imaginárias?

As três, Lúcia, Sylvia, Nora, respondem em uníssono:
- Salve Leopoldo!

As irmãs olhando uma para outra.

Lucia. - Onde esteve, irmã?

Nora. - Matando um carneiro.

Sylvia. - Mostrem-nos aos olhos dele!

Nora. - Aflijam-lhe o coração!

Sylvia. - Aproxima-nos como sombras...

Nora. - Afaste-o como aparição!


Seqüência 1 – Rua – Noite – (João)

Aos olhos de João, em macro-detalhe, é refletida a luz em movimento das ruas antigas do Rio

O relógio na torre da igreja marca 22 horas.

João, anda solitário pela cidade velha.

João, narrando:
- Só, sem escolta, sem amigos,
  Solitário e indiferente
  Como a espinha do arenque,
  Firme como um monte onde ao ar livre
  Cintilo com meus esgalhos.


Seqüência 2 – Casa – Noite (Maria)

Sobre a cama de lençol de seda branco está dormindo Maria, branca como a lua, nua, deitada no quarto de João.


Seqüência 3 – Rua – Noite (João, Lúcia)

João na rua.

As luzes em movimento nos antigos postes.

João caminhando.

No caminho ele passa por um casarão onde fica parado.

Uma mulher, Lúcia, descabelada, aparece na varanda.

Lúcia, chegando à sacada, olha de um lado a outro, fala:
- Desta vez não há esperança para ele: foi o seu terceiro ataque! Ele está morrendo.

Lucia sai da varanda e fecha a janela.

João sai continua caminhando na rua escura.


Seqüência 4 – Casa – Noite (Leopoldo, Lúcia, Sylvia, Nora)
                
Dentro da casa.

Leopoldo, ainda subindo a escada, explica para Lúcia o significado de algumas palavras.

Leopoldo:
- Quebranto e Contubérnio. Eu amo essas duas palavras... Quebranto, é uma suposta influência de feitiço por encantamento à distância e Contubérnio, é a convivência sob o mesmo teto com familiaridade, intimidade e camaradagem.

Lúcia:
- Era esse o sentimento que nos unia.

No interior da casa, na sala, a família está reunida.

Lúcia está ao lado do Leopoldo.

Lúcia, com a voz embargada:
- Ele disse-me várias vezes: não!...

Leopoldo, lamentando aos céus:
- Não ficarei muito tempo neste mundo...

Lúcia, choramingando:
- E eu que julgara vãs as suas palavras, sabia agora que eram verdadeiras.

Leopoldo:
- Como era verdadeira a sua doença nos olhos que o deixou cego!

Sylvia:
- Sua história é o sonho de quem não pode acordar.

Leopoldo:
- É um pesadelo de uma vida sem responsabilidade.

Nora:
- Ele foi um artista rebelde! A irresponsabilidade faz parte do prazer da arte.

Leopoldo:
- Não vejo prazer nenhum em perder a visão e passar a usar aquele ridículo tapa-olho de pirata, escrevendo livros que quando lidos, ninguém entende.

Lúcia:
- Eu acho a sua escrita bastante intrigante, charmosa e nobre...

Nora:
- Eis ai a dádiva de uma certeza!


Seqüência 3 – Rua – Noite (Velho Padre)

Na Rua o Velho Padre está olhando, por um tempo, para o sobrado.

Velho Padre:
- Toda a noite, quando passo por aqui e olho para janela onde um velho amigo sucumbe, eu murmuro a palavra paralisia...   

O Padre repete algumas vezes a palavra “paralisia” em diversas inflexões andando em frente da casa de um lado para o outro até abrir o portão e entrar.


Seqüência 5 – Casa- Dia (João, Leopoldo, Lúcia, Sylvia, Nora, Velho Padre)

Na casa.

No seu interior, na sala, onde os que ali estão conversam em uma língua estranha, João entra, sem olhar para eles, pois sua passagem não desvia a atenção da família. Ele não é notado.

Toda a família está na sala.

No quarto de João.

João entra no seu quarto falando sozinho:
- Paralisia... Esta palavra sempre soava estranha aos meus ouvidos... Agora, porém, soa mais forte como o nome de um ente maléfico e pecaminoso... Paralisia!

Na sala.

Leopoldo, para a Lúcia:
- Eu amo algumas palavras enigmáticas, elas me soam mágicas.  Paralisia é uma palavra tão estranha como a palavra Gnômon, que é o objeto que orienta o tempo pelo relógio do sol; a direção e o comprimento de sua sombra indicam à hora do dia. Quer outra palavra? Uma que o santo padre gostava de dizer? - Simonia, que significa a compra ou venda ilícita de coisas espirituais, como indulgências e sacramentos, ou as coisas temporais, como os benefícios eclesiásticos. Simonia que ele sabia muito bem praticar.

João, em tom mais alto, retornando para sala:
- Paralisia! Palavra que me enche de horror, mas ainda assim contemplo de perto seu trabalho implacável.

Leopoldo, vendo João se aproximar:
- Ora João, eu não te vi, pois você chegou acompanhado do mais dramático silêncio...

João, se afastando de todos:
- Paralisia! Paralisia... Todas as palavras que não conhecemos têm nelas escritos curtos significados reais e longos significantes ocultos... Entenderam?

Tempo Tempo Tempo
(titulagem em fundo negro)

O Velho Padre, vestido de preto com chapéu, já mostra certa dificuldade em se movimentar, entra na sala vazia e pega na mesa o biscoito que vai comer.

Quando ele consegue com dificuldade segurar o biscoito, antes de levá-lo a boca e mastigá-lo, o biscoito se esfarela e cai, sujando mais ainda a sua roupa preta.

Todos olham para ele com piedade.


Seqüência 6 – Rua – Noite (Velho Padre)

O Velho Padre anda em uma rua antiga e escura (algo semelhante a alguma Rua de Dublin).

Ele anda com lentidão com a boca e os passos trêmulos.
(Efeito)

Um forte facho de luz, um raio, invade com sua luz de forte azulada a cena por alguns segundos e depois se apaga.

A Janela da casa que está escura fica mais iluminada por alguns segundos...


Seqüência 7 – Casa – Noite (Leopoldo, Sylvia, Nora, Lúcia, João)

A luz vaza no interior da casa iluminada de azul.

Na sala estão assustados Leopoldo e as três irmãs.

Leopoldo fica em pânico com os ruídos e os relâmpagos que acompanham a claridade.
A luz pulsante desaparece e a cena volta a ser iluminada a luz natural.
               
Leopoldo, eloquente:
- Essa súbita manifestação espiritual que surge tanto no meio dos mais ordinários discursos ou gestos e que iluminam por dentro as mais memoráveis situações intelectuais. Essa luz que ilumina momentos como esses repletos de mistérios, fazem-nos pensar a natureza desses instantes fugidios. (olhando para três irmãs) Vocês sabem o que aconteceu?

Entra em cena o Velho Padre, teatral, explodindo em gestos e palavras os seus sentimentos.

Velho Padre:
- Epifania! A todo instante, em uma mão ou em um rosto, aparece de subido certa perfeição da forma. Você já notou que uma determinada coloração sobre as colinas ou sobre o mar é mais requintada que o resto da paisagem. Por um momento apenas, uma paixão, uma visão, uma excitação intelectual, tornam-se, aos nossos olhos, irresistivelmente reais e atraentes. Epifania! Foi isso que aconteceu aqui!

As três irmãs entram e saem da sala apressadas falando uma língua desconhecida.

As irmãs retornam alegres para sala.

Elas trazem a mesa suas iguarias: Sylvia o café, Lúcia o bolo e Nora uma garrafa de licor vermelho sem rótulo.

(Uma janela da sala está coberta com pano verde - imagens de arte são projetadas em croma)

O padre e Leopoldo estão sentados em cadeiras postas em frente desta janela. Tomam o café, brindam com a bebida e enquanto comem um bolo, muda-se o cenário de fundo.

Leopoldo:
- Uma vez que a vida se dissolve sob os nossos passos, por que não procurar apreender uma paixão requintada, uma contribuição ao conhecimento que iluminando certo horizonte, por um único momento, parece entregar ao espírito a sua liberdade.

As três mulheres dançam em torno das cadeiras.

Sylvia:
- Uma excitação dos sentidos!

Nora:
- Estranhos matizes, estranhas cores, odores bizarros...

Lúcia:
- Essa luz é simplesmente uma obra feita pela mão de um grande artista ou é o rosto de um ser amado.

Velho padre:
- Vocês compreendem: quando o poeta sente esse momento de luz ele acaba de sondar intensamente, em toda sua verdade, o ser do mundo invisível... O lado oculto do homem!

Lúcia:
- O universo e o tempo.

Sylvia:
- A beleza da arte, esplendor do verdadeiro, acaba de nascer!

Nora:
- E o espírito que nasce do verdadeiro e do belo é o espírito sagrado da alegria...

Leopoldo:
- Exprimir alegria! Isso é que é necessário.

Todas dançam esboçando um largo sorriso.

Velho Padre, para si mesmo:
- A mais elevada visão não tem nenhum valor se não for manifestada e condensada em formas vivas. Com ela você tem tudo a criar...

Lúcia:
- A liberdade de toda uma vida!

Velho Padre, exaltado:
- Vocês precisam saber de uma vez que no universo só a poesia é verdade, aquele que sabe contemplá-la e atraí-la em sua direção pela virtude do pensamento, está bem perto de conhecer o segredo da vitória sobre a vida.

Leopoldo, levantando-se:
- Eu peço um minuto de silêncio!

Silêncio.  

Sylvia:
Ele era um bom homem...

Leopoldo:
- Não! Não afirmaria o que ele era exatamente um bom homem..., mas havia nele algo de excêntrico, de misterioso. Sempre o vi desde que aqui chegou como um homem enfadonho e tolo!

Sylvia, para Leopoldo:
- No princípio, quando o conhecemos, ele era debochado, sarcástico, costumava ser interessante nos seus monólogos sobre o amor dos homens e o amor de Deus, mas logo me cansaram e lembro-me também de suas intermináveis histórias dos horrores da guerra na Europa, da solidão, do céu e do inferno... Às vezes ficava entediada... Que Deus me perdoe...

Leopoldo, aproximando-se da sua mulher:
- Tenho minha teoria sobre isso... Penso que ele enganou a todos nós..., como um desses santos de altar feitos de barro...

Nora, entrando em cena:
- Mas não me é difícil afirmar..., pois pra mim ele parecia ser um santo!

CONTUBÉRNIO
(titulagem fundo negro)

 Leopoldo olha provocativo para João que esta comendo sentado em uma cadeira.

Leopoldo:
- Bem João, está sendo um dia triste para você...

João levanta os ombros e continua a comer.

Leopoldo:
- Hei! Estou falando com você... Ainda sou o mais velho da casa!

João:
- O que você quer falar, meu velho?

Leopoldo:
- Falar sobre ele, seu mestre e conselheiro...

Lúcia, aproximando-se:
- Leopoldo... São almas gêmeas! Não passa disso. O mestre ensinou-lhe muitas coisas, compreende?  Ele o quer muito bem e é isso que interessa e por isso mesmo deixe-o em paz...

Leopoldo, irônico olhando para João:
- Deus tenha piedade de sua alma... Eu não gostaria que um filho meu tivesse muito a falar com um homem desse tipo. Blasfemo e intolerante. Possuía uma energia diabólica. Essa aqui é uma casa de família que cultua Deus, um único Deus, não acredito por tanto em milagres e santinhos.

João, com ar de curiosidade:
- Que você pretende dizer com isso?

Nora, falando para toda a família:
- Eu disse para ele que não deve ter sido nada bom para uma criança ser abandonada como você foi...

Lúcia arregala os olhos, assustada, e quando Nora ia dizer outra coisa o Velho Padre aparece e bate com a mão na mesa assustando a todos.

Velho Padre, nervoso:
- Não quero ouvir nem mais uma palavra! Blasfêmia e intolerância machucam os meus ouvidos, martirizam o meu ser.

TEMPO FUGIDIO

Leopoldo olha para o rosto de João e muda a entonação da frase olhando com timidez em outra direção.

Leopoldo, tímido:
- A minha opinião é a seguinte: rapazes devem andar e se divertirem com rapazes da mesma idade e não com um velho no fim de carreira... Pronto, tá dito!

Longo silêncio, todos olham para ele.

Leopoldo, vacilante:
- Não estou certo? João sabe que eu só quero o seu bem...

Sylvia, olhando para Leopoldo:
- Também penso assim... Todos nós o queremos bem!

Nora:
- O Padre é um homem culto, isso não se pode negar. Às vezes me parecia um homem santo e é por isso que gostamos muito dele...

Leopoldo:
- Eis ai um milagre! Ele foi professor de todos vocês e fico a imaginar quantas loucuras o bruxo colocou em suas cabeças

Sylvia, aproximando-se de João:
- Para com isso! Olha como ele anda triste, ficou doente, come pouco, está muito magro e você ai debochando...

Nora:
-Todos nós aqui sabíamos que o nosso menino só quis dele um pouco mais da sua sabedoria... Hoje, mais do que antes, precisa-se estudar e vencer na vida e não ficar como você aí, (aponta o dedo para Leopoldo) um funcionário público, um repórter mal remunerado e infeliz...

Leopoldo:
- Não sou mais funcionário de coisa nenhuma... Estou aposentado! Agora sou só jornalista, trabalho na tevê e se eu ataco com escárnio e mal dizer a realidade, vocês que aprendam a se defender! Isso é que é preciso... Sempre disse para o João que quando eu era mais novo e fazia muito exercício, tomava toda manhã, fosse mês de inverno ou de verão, uma ducha de água fria e ia para o trabalho. É o que me conserva firme até hoje. Isto é que é sabedoria! Cultura é coisa boa, mas pra poucos...

Passa pela sala Nora carregando uma bandeja com pedaços fatiados de carne crua com sangue que oferece a Leopoldo.

Nora:
- Creio que meu irmão apreciaria uma fatiazinha dessa carne mal passada de carneiro...

 Leopoldo, sem cerimônia, pega com a mão duas grossas fatias.

Leopoldo:
- Carneiro de Deus! Que tirai os pecados do mundo... Entre a carne do carneiro e a do cabrito eu prefiro a do bode.

João, recusando a oferta.
- Não! Obrigado...

 Leopoldo come com a boca cheia.

Nora, falando sozinha:
- O sacrifício do carneiro, que é propiciatório do bem, favorece a indulgência, o perdão, a remissão total dos pecados... Deus fez o alimento e o diabo acrescentou o tempero.

Leopoldo:
- O bode, ao contrário, sacrificado em suntuosos banquetes regado ao vinho, é bicho propiciatório do mal, favorece a riqueza, a malevolência, a tragédia e a farsa. 

Sylvia:
- Isso é que é o saber! Mas, insisto em voltar ao morto. Você acha meu amor, que a convivência com ele não foi boa?

Leopoldo, ainda comendo:
- Somos impressionáveis com o que não entendemos... Pessoas quando vêem e ouvem coisas que não entendem..., a senhora sabe que elas ficam confusas, isso tem um efeito devastador, ainda mais partindo de um velho louco místico e jesuíta.

João levanta-se abruptamente da cadeira e olha para Leopoldo que se cala assustado.

João, com raiva:
- Cala essa boca! Não sou mais uma criança, mas você é, e sempre será um velho repórter imbecil! Vou dormir agora se não vou vomitar...

Leopoldo, debochando:
- Mas pra que essa raiva toda, falo do passado, ora! Vai tomar um banho frio e descanse a cabeça, o que vale o homem para um jesuíta se nem santo ele é?

Lúcia:
- Mas ele viveu sua vida no mistério da fé católica!

Leopoldo, com ironia:
- Na parte da manhã! À tarde freqüentava os cultos evangélicos, onde tinha uma amante e a noite batucava no terreiro da vizinha. Ninguém conseguia entendê-lo. Era um devasso em sua intimidade e vivia cada dia em um lugar diferente, nunca morou num convento. Vive para escrever um livro que ele chamava da bíblia moderna que parece não ter fim (Um exemplar de Ulisses bastante envelhecido está sobre a mesa).

Nora:
- Não invente mentiras! Não se debocha do desconhecido. Do intraduzível. Do indecifrável. Deixe-o em paz!

João entra no seu quarto e deita-se com raiva de roupa e tudo na cama.

A cena escurece.

Silêncio Sombra Silêncio
(titulagem em fundo negro)


Seqüência 8 – CASA – Noite (João, Velho Padre, Maria)

João, deitado na cama, cobre a cabeça com um cobertor.

Na escuridão do quarto o sonho de João:

João está de pé ao lado do Velho Padre que é ele mesmo envelhecido

Aos olhos do Velho Padre, nesta cena gelada, aparecem os seus livros na geladeira.

O rosto do Velho Padre está iluminado.

Em outro ângulo na contraluz azul da cena, o padre lembra um personagem renascentista de um homem santo envolto de luzes coloridas e nuvens cinza.

João continua deitado na cama com a cabeça coberta com uma manta.

Ele está sonhando, mexe-se muito.

Quando descobre o rosto, em um movimento brusco, está bastante suado.

Ao seu lado, sentada na cama observando-o, está Maria que tenta acordá-lo.  

João, ainda sonhando:
- Não! Não! Meu pai! (tentando abrir os olhos) Só com muita dificuldade consigo ver seu espectro misturando-se com as nuvens de um céu carregado... Do seu rosto, na sombra, só vejo a boca paralítica, quase sem movimento, trêmula, tentando com muita dificuldade me dizer alguma coisa...

O Velho Padre com a língua mole, para fora da boca, trêmula, fala e gesticula em silêncio.  

As nuvens cinza no céu em longa fusão cobrem totalmente o espectro do Velho.

João acorda assustado com os carinhos amorosos da Maria.

Tempo Templo Tempo
(titulagem em fundo negro)

João vira-se na cama e fala para Maria:
- Maria enquanto eu sonhava, senti a alma retroceder para uma região ao mesmo tempo agradável e corrupta e também lá o encontrei esperando por mim...

Maria:
- Você estava sonhando comigo João ou com seu pai?

João:
- Sem sonhar, posso conceber uma dolorosa paixão? Entrar na noite do seu ser? Não sei o que acontece comigo... Nesta noite eu sonhei com você e com meu pai. É possível que uma pessoa tenha sentimentos como os meus e que a outra não tenha nada?

Maria:
- Não João! Não é possível.

João:
- O que está acontecendo comigo Maria?

Maria, meiga:
- Você fechou os olhos na languidez do sono... Suas pálpebras então tremiam como se sentissem o amplo movimento cíclico da terra e seus olhos mexiam lá dentro como se sentissem a estranha luz de algum novo mundo fantástico, ofuscante, incerto, deslumbrados como a paisagem submarina atravessada por formas e seres nebulosos.

João, com espanto:
- Era um mundo, uma claridade ou uma flor?

Maria, meiga e mística:
- Uma flor que se abria, desenvolvendo-se e sucedendo a si mesma, incessantemente, explodindo em púrpura absoluta, desdobrando-se e esmaecendo para o mais pálido rosa, pétala por pétala, onda de luz por onda de luz, inundando todos os céus com suaves clarões, cada um mais intenso que o outro.

João, colocando a mão dentro da calcinha da Maria:
- Essa história é real ou é um sonho do qual temos que acordar?

Maria, resoluta:
- Acordar! Não! Jamais! Vença-me João... Seduza-me... Sonhe comigo... Venha! Ah! Faça-me sofrer do seu amor.

Os dois se abraçam e se beijam.

João:                                                                                                                                      - Minha adorada menininha de convento!Questões que se resolvem com sofrimento nunca ficam resolvidas... E tornam-se masturbação! É impressionante como ela está sempre à nossa mão...  (sorrisos)

Maria:                                                                                                                                    - Você é um homem engraçado, tem o espírito simples de um camponês, é facilmente excitável e cativa-me com sua voz culta e sonolenta. Carinhosamente, delicadamente, venha me apertar nos seus braços fortes...

 João:
- Minha colegial travessa, provocativa e de olhar lânguido..., sonhos do criador, minha musa inspiradora, eu te quero para sempre minha!

Sexo Confissão
(titulagem em fundo negro)

Cenas rápidas de sexo em muitos detalhes dos corpos de João e Maria se conhecendo .


Seqüência 9 – Igreja – Dia (Velho Padre)

Detalhes do interior e exterior de uma Igreja antiga em perspectiva deformada pela lente grande angular.
O Velho Padre está sorrindo.

Seqüência 10 – Casa – Dia (João, Maria)

João acorda suado na cama, assustado, envolto no cobertor, falando frases desconexas para a bela mulher que está por baixo do lençol de seda branco mostrando e realçando as curvas do seu corpo nu.

João, delirando:
- Eu o vi sorrindo! Morreu de paralisia sorrindo!... Eu também sorria delicadamente, como para absolvê-lo da simonia do seu pecado... Ao seu lado Deus também sorria...

Maria, consolando:
- Achei que era pesadelo, um pecado mortal, mas vejo que foi um sonho bom, sonho de encontro e desejo, um desejo animal e atávico perdido no tempo. É um mistério de Deus o que estamos vivendo aqui nessa noite...

João, excitado:                                                                                                                                    - Ó, não! Não foi o desejo carnal; não foi a loucura desenfreada e brutal do meu pai; não foi a cobiça selvagem e bestial do teu corpo o que me atraiu em ti e que me prendeu a ti. Não, não é isto absolutamente e sim o amor mais terno, cheio de piedade e adoração por tua mocidade repleta de criancice e franqueza. Ai, a dor gostosa que puseste no meu coração! Ai, o mistério de que tua voz me fala! Como detesto Deus e a morte! Como adoro Você e a vida!

Os dois fazem sexo até o dia clarear.

O dia amanhece invadindo com toda a sua luz o cenário do quarto de João que acorda sozinho na cama.

João levanta-se e sai do quarto.


Seqüência 11 – Rua – Entardecer (João)

Na Rua.

João anda pela cidade vazia

Lojas e vitrines.

Trânsito de poucas pessoas e carros.

João vira uma esquina e começa a caminhar pela rua deserta cheia de sombras.

Chega à porta da casa onde mora.

Detalhes da frente da Casa


Seqüência 12 – Casa – Entardecer (João, Sylvia, Lúcia, Nora, Leopoldo)

João entra na casa.

João caminha pela sala onde todos estão ali, sentados ou em pé, comendo sem parar.

João passa e todos que olham para o jovem rapaz bonito e bem vestido.  

Sylvia, para Lúcia:
- Benza-deus! Que homem bonito e elegante é o nosso João...

Lúcia:
- Está indo estudar literatura em Dublin, na Irlanda!

Nora:
- E onde fica isso?

Leopoldo:
- Onde o nosso pai perdeu as botas... (risos)

Sylvia:
- Fica no fim do outro lado do mundo... (risos)

João se aproxima, abraça todos como que se despedindo e sai emocionado.


Seqüência 13 – Rua - Dia

Em detalhes abstratos a arquitetura do Rio antigo


Seqüência 14 – Casa – Dia (Sylvia, Leopoldo, Nora, Lucia)

Na casa

Na sala todos estão comendo, mastigando alguma coisa.

Sylvia:
- Bem, ele foi para um mundo melhor... Recebeu a extrema-unção e foi preparado...

Leopoldo, surpreso:
- Então ele sabia que ia partir? Aquele filho da puta!

Nora:
- Estava totalmente conformado.

Lúcia:
- Seu rosto mostra isso...

 Nora:
- Foi o que eu disse. Parecia que estava dormindo, tão resignada e serena é sua expressão. Ninguém podia imaginar que ele estava assim tão bonito...

Lúcia, resignada:
- Ele sempre foi um homem muito bonito, bom e caridoso...

Sylvia, afirmativa:
- Isso é verdade!...

Neste momento passa novamente Nora carregando uma bandeja com pequenas taças e uma garrafa brilhante de champanhe.

Todos alegres se servem da bebida.

 Leopoldo:
- De qualquer maneira vocês fizeram tudo o que podiam. Foram muito devotadas a ele.

Lúcia:
- Ah! Pobre homem! Deus sabe que apesar de nossa pobreza fizemos o que estava ao nosso alcance. Não lhe deixaríamos faltar nada enquanto vivesse. Veja a Nora, está esgotada!

Sylvia reclina-se na cadeira e depois abaixa a cabeça prestes a adormecer.

Nora:
- O trabalho que tivemos de lavá-lo, vestindo-o e cuidando de todos os papéis... Foi muito doloroso.

Leopoldo:
- Muita bondade de todas vocês para quem não merecia.

Lúcia:
- Ninguém mais merecia do que ele. Nas horas difíceis o que vale é a família e os amigos em que se pode confiar.

Leopoldo:
- É bem verdade... Peço desculpas. Estou certo de que agora no outro mundo para onde foi, ele não se esquecerá de você e de toda a sua dedicação.

Lúcia, com modéstia:
- Ele não nos dava muito trabalho. Não se notava a sua presença na casa mais do que agora. No entanto, sei que se foi e... (cobre o rosto com as mãos).

Nora, constrita:
- Quando tudo terminar e o tempo passar é que nós sentiremos a sua falta.

Lúcia:
- Sei disso. Nunca mais lhe trarei sua sopa antes de dormir... (volta a esconder o rosto com as mãos). Nunca mais ouvirei a sua voz aveludada clamando pelos mistérios da vida. Nunca mais o verei caminhando pelas ruas da cidade. Nunca mais...

Nora:
- Muitas vezes encontrava-o inerte na poltrona, dormindo com a boca aberta e o seu livro caído no chão.

 Lúcia, retirando do rosto as mãos:
- Ele quase já não abria os olhos e me dizia quando acordava: antes do verão terminar vou levá-la para um belo passeio... Era uma idéia fixa que ele repetia sonhando... Pobre homem!

Leopoldo:
- Lúcia você não acha que já chegou à hora de contar para nós toda a verdade...

Lúcia desaprova com o olhar o que disse Leopoldo.

Lúcia:
- Já não tenho mais nada para falar... Ele foi embora da terra para outro lugar de onde ninguém retorna. Foi e não volta mais.

GNÔMON
(titulagem em fundo negro)


Seqüência 15 – Mar – Amanhecer -Dia – Entardecer - Noite

Mar bravio nas pedras.



Seqüência 16 – Rua – Entardecer - Estação do Bonde (João, Maria)

Estação.

João sai de casa apressado.

João está na estação do bonde no arco da Lapa.

João entra no bonde.

O vagão está vazio e o seu interior possui uma atmosfera expressionista.

Luzes da cidade passam pelas janelas do bonde em movimento.

As imagens da cidade ao fundo passam em uma velocidade espantosa formando desenhos gráficos abstratos nas janelas do vagão.

(Efeito) O grafismo muda em contínuas fusões para imagens reais que passam agora na janela até a parada do metrô.

O bonde pára na estação.

Entra no vagão, onde João está sozinho, Maria, toda de branco, branca como a lua, com seu rosto angelical.

Os dois se olham.

João passa a observar o rosto e o corpo de Maria enquanto pensa:
- Quem é essa mulher de rosto pálido e de movimentos tímidos e nervosos que com seus traços longos e finos, me olha com um calmo desdém e calma resignação? É uma jovem de qualidade, tenho certeza. Vejo as suas longas pálpebras baterem e se erguerem até que um ponto incandescente arde e se agita na íris aveludada. Quem será essa mulher, frágil e amadurecida?

Maria sai do vagão.

O bonde movimenta-se novamente.

João fecha os olhos.


Seqüência 17 – Rua – Entardecer (João, Maria)

Porta da Casa.

O sol ilumina a sua entrada

João olha a casa, que está vazia, e pega na mão de Maria.

Maria:
- Você mora aqui?


Seqüência 18 – Casa – Entardecer (João, Maria)

João e Maria entram na casa.

Livros espalhados na mesa ao lado de uma máquina de escrever antiga.

João:
- Eu comprei essa casa por que resolvi residir por algum tempo na cidade, vivia no mato e ao lado do mar, tinha que trabalhar e vim morar aqui no centro... Os outros bairros eu os julgava vulgares, modernos e pretensiosos... Moro a alguns anos nesta casa repleta de livros antigos, onde meu único prazer é o meu trabalho... Escrevo para viver e vivo para escrever...

Templo Memória Tempo
(titulagem em fundo negro)

Cenas esparsas de amor e admiração, românticas e rápidas, dos momentos felizes que ele passou ali com Maria.

João agora está sozinho e de olhos fechados sentado de frente para uma mesa com um moderno notebook.

Saindo do seu devaneio abre seus olhos e passa a ver todo o ambiente da sala vazia.

 João:
- Nesta mesa já não há mais livros nem a minha velha máquina de escreve existe mais... Meus livros estão indo parar na geladeira! Congelados... É o fim.., nem o amor resistiu.

João afasta-se da mesa, risca um fósforo e ascende seu pequeno charuto dando boas baforadas.

João:
- Dia sem Luz. Noite sem lua. Nuvens sem Sol. Faz um frio terminal...

João está sentado escrevendo no computador.

Abruptamente ele fecha a tampa do computador, levanta-se da confortável cadeira e sai da sala.


Seqüência 19 – Rua – Entardecer -(João)

Porta da casa.

João sai de casa.

Passa por belas paisagens no caminho.

Logo em seguida chega a um restaurante.


Seqüência 20 – Restaurante – Noite (Mariana cantora, João, Maria)       

O restaurante está vazio.

Uma cantora e seus acompanhantes tocam uma música romântica.

João entra no restaurante onde está Maria, sozinha, com o mesmo rosto triste, a mesma roupa branca angelical.

Os dois se olham e cumprimentam-se com sutil gesto de cabeça.

Com certa timidez João vira o rosto e deixa de olhar Maria.

Pouco tempo passa e ele, sutilmente, vai movimentando o rosto.

João move lentamente a cabeça se esforçando para tornar a vê-la.

Maria levanta-se e caminhando lentamente ao som da música vai de mesa em mesa se aproximando um pouco mais de onde está João sentado.

Ele se intimida.

Maria, com alegria:
- Que pena haver tão pouca gente neste restaurante... É tão desagradável conhecer pessoas, comer, ou mesmo fazer outras coisas como cantar, representar, namorar, com todas essas mesas vazias, sem platéia... (sorri).

João:
- Desculpe-me, mas você é uma artista... Uma atriz famosa?

 Maria:
- Nem uma coisa nem a outra. Só usei das cadeiras vazias como uma observação a esse momento, a esse encontro que se repete...

João, olhando para os seus pequenos detalhes fisionômicos, pensa:
- De quem serão estes longos lábios cobiçosos e obscenos, molusco de sangue escuro..., e também esses olhos de um azul profundo e resolutos a me hipnotizar? De quem é esse olhar de desafio abrandando-se, no que parecia um deliberado desfalecer da pupila na íris, revelando, por um instante, um temperamento de grande sensibilidade?

Maria desfila na sua frente entre as mesas e sai do restaurante.

João, clamando:
- Oh! Deus... Ela faz as coisas mais simples com distinção. Da próxima vez que ela aparecer, me ajude para que eu possa saber vê-la!


Seqüência 21 – Rua - Noite

É noite. A cidade adormece no horizonte.


Seqüência 22 – Mar - Noite  

O mar noturno e bravio bate nas pedras.

A lua brilha no mar.


Seqüência 23 – Casa – Noite (João)

Casa

João está sozinho na sala da casa digitando na máquina de escrever.

Ele abre a janela e contempla as luzes da cidade bebendo um cálice de vinho tinto.

Ele, que está de pé na janela, olha para o alto contemplando a lua e sorri.

Ascende o seu charuto e dá uma baforada no ar.

A fumaça cobre como nuvens a luz da lua cheia.

O seu pensamento espelhado no olhar (de Maria) trabalha na memória de imagens passadas...


Seqüência 24 – Bonde – Dia (Maria)

Cortes rápidos de cenas com Maria no bonde.

O rosto de Maria ao lado da janela se mistura a cena da cidade passando.


Seqüência 25 – Casa – Dia (João)

Na casa:

João, lendo o que acabara de escrever na máquina andando na sala vazia. (a imagem é editada com cenas ampliadas de filmes):
- Aqui, saindo da escuridão do desejo, estão olhos que ofuscam... Aqui estão os vinhos, todos de âmbar, declínios moribundos de suaves árias. Aqui está o pavão do orgulho, as damas gentis arrulhando de seus balcões com bocas ávidas, donzelas marcadas e jovens esposas que se entregam alegremente a seus violadores.

João serve-se de vinho e diz alto, brindando a cidade:
- Evoé! Evoé! Evoé!

Alguém bate na porta da casa e João volta à realidade e caminha pelo corredor e desce a escada tortuosa com uma taça de vinho equilibrada na mão.

João, andando e descendo a escada:
- Batem e batem de novo, mais uma vez! Mas que pressa é essa de me ver, de me entender, de me consumir... Eu não sou de ninguém, mas alguém está chegando! Olha o champanhe!Quem quererá me ver agora? Não tenho amigos com tanta intimidade de bater a minha porta...

Cenas de filmes onde as mulheres se entregam aos seus violadores.

João deixa a taça de champanhe cair no chão e abre a porta.


Seqüência 26 – Rua – Dia (João)

Lá fora, na rua, não há ninguém.

João então sai de casa.


Seqüência 27 – Dia - Estação do Bonde (João, Maria)

João está na estação do bonde

Ele entra no bonde que está cheio.

O bonde segue o seu trilho.

O bonde para em outra estação.

Maria entra no bonde.

João olha para Maria:
- Oi! Novamente nos encontramos...

Maria corresponde e o cumprimenta com um sorriso e sai do bonde como que evitasse aquele reencontro. João também sai do bonde. Ambos ficam parados na estação.

Passa um tempo de trocas de olhares.

João sorri e se aproxima mais da Maria.

João:
- É a terceira vez que nos encontramos nesta mesma estação. Você não acha estranho tantas coincidências dimensionais? Sinto que neste espaço o destino e o tempo estão pregando em nós uma peça...

Maria, afirmativa:
- Estou na minha estação... Tenho que ir... Mas não faça essa cara! Se o destino quiser nos veremos novamente, talvez em outra dimensão! (sorri)

João a segura pelo braço.

Ele está excitado e inseguro.

João, nervoso:
- Quando posso te ver novamente?

 Maria faz com que João largue o seu braço.

Antes de sair Maria olha para João.

Maria, meiga:
- Amanhã te espero no restaurante onde sempre nos encontramos...

João sorri.


Seqüência 28 – Casa – Noite (João)

No quarto da casa.

João está dormindo.

Ele acorda suado, com o sol no rosto e muito calor.

Ele olha para o relógio e sai apressado da cama.

Veste-se e sai de cena.


Seqüência 29 – Restaurante – Noite (João, Maria)

João entra no restaurante procurando por Maria.

Ela não está.

O tempo passa.

Ele não consegue descansar.

O dia escurece.

Ele continua esperando.

Ele sai do restaurante e fica um tempo parado na porta.

Ela não aparece.

Ele sai caminhando cabisbaixo, pensativo.

Maria aparece andando ao seu lado.

Ele e ela, um ao lado do outro.

Ela propositalmente esbarra nele.

Ele levanta a cabeça e ambos se olham.

João:
- Você me fez passar o dia procurando você...

Maria, severa:
- Sou uma mulher casada e não devo encontrar-me com estranhos em lugar nenhum desta cidade...

João, veemente:
- Mas foi você que nomeou o convite!

Maria, delicada:
- Estou aqui para não cometer uma indelicadeza com você...

João:
- A indelicadeza já foi cometida...

Maria:
- Peço então perdão pelo mal entendido.

Maria sai na rua em direção contrária de João.

João passa a acompanhá-la de certa distância.


Seqüência 30 – Rua – Noite (João, Maria)

Cidade a Noite

Maria caminha na rua seguida por João.

Vitrines e mais vitrines coloridas.

Eles param em frente de uma livraria iluminada.

João se aproxima dela.

Maria:
- Por que você está me seguindo?

João:
- Fiquei encantado, aquebrantado... Não quero perder a única coisa digna que encontrei nessa vida...

Maria:
- Já te disse que sou casada...

João:
- Que mal uma amizade pode fazer a um casamento?

Em outro ambiente de vitrine na livraria.

Maria:
- O que você faz na vida?

João:
- Escrevo! Sou um escritor!

Maria:
- Você tem algum livro publicado?

João:
- Poucos ainda...

Maria, curiosa:
- E eles são lidos?

João:
- Não sei, poucas pessoas entendem o que escrevo.

Silêncio

Troca de olhares.

João:
- Gostaria que essa noite durasse uma eternidade. Poder te encontrar outras vezes, em outros lugares, outras cidades, outros mundos...

Maria:
- Não me sinto a vontade para isso.

João:
- Não podemos ser amigos?

Maria:
- Já está ficando tarde, tenho que ir...

João:
- Posso te acompanhar até a sua casa?

Maria não responde e sai da livraria.

Ela anda pela rua movimentada e João segue ao seu lado.

João:
- Caminhando nesta rua movimentada e barulhenta, com todas essas imagens e esses sons que se misturam entre mim e você em uma única sensação vital, eu imagino conduzi-la, incólume, através de uma multidão de inimigos.

Ela sorri.


Seqüência 31 –Noite – Restaurante (João, Maria)

Maria, olhando para João, com timidez:
- Preciso te dizer que quando te vejo uma torrente parece transbordar meu coração e inundar-me o peito de preocupações... Pouco me preocupa o futuro, mas não sei se tornarei a vê-lo e, se o fizer, de que modo poderei revelar a você a minha tímida adoração?

Abruptamente ela enfia a mão na calça de João pegando com firmeza no seu sexo.

João fica espantado, atônito com aquela carícia e fecha os olhos.

Um barulho... Alguma coisa se aproxima. Sombras da noite.

Maria, tirando a mão apressada da calça de João, sorri.

Maria se afasta de João que permanece com os olhos fechados...

Maria:
- Nos encontramos amanhã!

João abaixa a cabeça.. Ela sai do restaurante


Seqüência 32 – Casa – Dia (João)

Na casa.

João tomando um banho.

João, debaixo da água:
- É estranho ver de que mares de lama os anjos fazem surgir o espírito da beleza.

João veste uma roupa.

Passa pela sala vazia, toma um café e sai pra rua.


Seqüência 33 – Restaurante – Dia (João, Maria)

João e Maria conversam animadamente em uma mesa perto da janela.

João:
- Maria eu já me sinto um gênio disposto a realizar os seus desejos...

Maria:
- Penso estar cometendo um terrível erro estando aqui com um gênio...

João:
- Os gênios não cometem erros. Os seus erros são sempre involuntários e dão origem a alguma descoberta e também realizam desejos...

Maria:
Você quer me dizer que nossos erros são os portais de novas descobertas?

João:
- Sim!

Maria:
- Mas o erro não é um preço caro demais a se pagar por uma descoberta?

João:
- Tudo é caro demais quando não é necessário, mas você é tão bela, tão necessária...

Maria, debochada:
- Então João me diz o que tenho de fazer para manter para você essa minha beleza?

João:
- Há três coisas necessárias à beleza: integridade, harmonia e luminosidade.

Tempo Templo Tempo
(titulagem em fundo negro)


Seqüência 34 – Praia- Entardecer (João, Maria)

Vários momentos de admiração mútua e de romantismo infantil do casal passeando na praia.

O mar bate nas pedras.

Em uma cena romântica eles estão caminhando pela areia a beira mar.


Seqüência 35 – Casa – Entardecer (João, Maria)

João e Maria entram na Casa.

Maria fica encantada e anda bailando pelos corredores enquanto João vai até a sala e lhe serve uma taça de vinho.

Ela assenta-se em cima da mesa e dança sobre uma capa macia e amassada de veludo vermelho que João havia estendido.

Ele faz um brinde. Ela dança. Ele faz outro brinde.

Ela pára de dançar e levantando-se sensualmente da mesa tira a sua calcinha, fica nua e enrola-se no pano de veludo vermelho saindo da mesa.

Ela pega com João um cálice de vinho, bebe e derrama o resto do vinho vermelho entre suas pernas.

Maria, dançando ao som da trilha cubana.

Maria para de dançar e olha para João.

Maria:
- Meu amor...

João, olhando nos seus olhos:
- Você chama o amor com uma voz fraca de além das estrelas frias e deixa-me aquebrantado. E agora se põem em silêncio..., o que está acontecendo com você?

Maria:
- É o encanto, o quebranto... A voz do silêncio que fala pra mim...  

João:
- Fale de novo, fazendo-me sábio! Dance pra mim novamente...

Maria dança o início da música e se enrosca na direção de João pelo pano vermelho amassado que cobre a mesa.

Cena de sexo na mesa e depois no chão com a trilha original do bolero.

Tempo Templo Amor
(titulagem em fundo negro)

Maria e João estão deitados no chão da sala, relaxados fumam um charuto.

Maria:
- Me fale agora de você! Como você é?

João:
- Como eu sou? Sou um homem sempre pronto a descobrir nas outras pessoas qualidades redentoras, mas geralmente me decepciono... Não tenho amigos, nem companheiros, não creio em um deus e nem freqüento templos. Vivo espiritualmente isolado de todos. Visito parentes no Natal e os acompanho ao cemitério quando morrem. Cumpro esses dois deveres sociais por formação e tradição. E você?

Maria:
- Eu sou o seu contrário: vejo-me sempre a pequena distância do meu corpo, observando meus próprios atos com olhares furtivos e desconfiados. Tenho uma estranha mania que me leva, de quando em quando, a compor mentalmente uma curta sentença a meu respeito...    

João, se aproximando de Maria:
- Através do espírito crítico irlandês, eu vejo diferente a mulher amada, se posso assim dizer, vejo-a em centenas de poses, grotescas, vergonhosas, virginais, langorosas a se entregar novamente a mim, caríssima, todinha... Entrega-me tudo que é sagrado, oculto aos outros, tens de me dar sem reservas. Quero ser o senhor do teu corpo e alma.

Maria:
- Raramente me sinto tão encabulada...

João:
- Quero te abraçar sempre... Sim! Gosto de sexo, gosto de trepar, gosto de fuder, de chupar e de tudo aquilo que se chama fazer amor...  Mas por favor, deixa de lado a couraça... liberdade sem medo!

Maria, séria:
- Você é muito convincente, porém apressado naquilo que desejas, sofres do mal que persegue os artistas, a sua falta de tempo... Acabamos de namorar!... Não seja imoral! Gostaria de conversar um pouco mais para te conhecer melhor...

João:
- Você me conhece muito bem! Não foste tu que apressada enfiaste a mão lá embaixo dentro da minha calça e seguraste minha pica, meu pau, meu grande cacete com teus dedos compridos e comichentos? Não foste tu aos poucos apertando ele todo, duro e gordo, me deixando enlouquecido e sozinho?

Segurando Maria, de pé nos seus braços, João fala em seu ouvido antes de levantar novamente o seu vestido.

João:
- Agora com aquela mesma mão me bate uma punheta devagar até que eu goze entre teus dedos, e você fique debruçada sobre mim todo o tempo, fitando-me com teus olhos tranqüilos que parecem de santa... Em breve meu corpo vai penetrar no teu, oxalá que minha alma o pudesse também! Oxalá que eu pudesse aninhar-me no teu útero como uma criança nascida de tua carne e teu sangue, ser alimentado com teu sangue, dormir na quente penumbra secreta de teu corpo!

Cena de sexo em pé.

João:
- Sinto tuas nádegas gordas e suadas debaixo de meu ventre e vejo teu rosto em fogacho e teus olhos aloucados.  No âmago deste amor espiritual que tenho por ti, há também um desejo bestial e bruto por todos os pedacinhos de teu corpo, todas as partes secretas e vergonhosas dele, pelos cheiros todos dele e por tudo o que ele faz.

Maria:
- Vamos mudar isso, vamos?

João:
- Não! Não vamos, minha amantezinha punheteira, minha putinha fudedora. Eu sei e você sabe que gostamos da sacanagem, da putaria, faz o sexo ficar mais gostoso. Há um lugar que eu gostaria de te beijar, sabes, um lugar esquisito... Não nos lábios! Sabes onde?... Não?... Diz-me os menores detalhes a teu respeito contanto que eles sejam obscuros e secretos... Vamos! Diga as duas partes de teu corpo que fazem coisas sujas e são as mais adoráveis para mim...

Maria:
- Assim você está me deixando mais encabulada ainda...

Fazem sexo ritmado como se fosse uma dança exótica.

TEMPO TEMPLO TEMPO
(titulagem em fundo negro)

João e Maria cansados estão deitados na cama e se alimentam de biscoitos.

João:
- Está combinado: você vai ficar aqui comigo e não se fala mais nisso!

Maria:
- Infelizmente não posso, tenho que ir visitar minha avó com meu marido...

João:
- Visitar sua avó com seu marido? Tudo bem! Temos ainda algum tempo?...

Os dois se abraçam e se excitam novamente.

Maria:
- Podemos então viver um sonho... Um sonho substituindo a vida, o amor?

João:
- O sonho nada substitui é um simples ornamento da vida...

Os dois abraçados entram no quarto e voltam novamente a fazer sexo, agora na cama do João.

Maria:
- Você está feliz?

João:
- Sim!... Mas ficaria muito mais feliz ainda se me desses um daqueles beijos chupados que gostas tanto de dar e que me fazem lembrar canários cantando...

Os dois dão boas risadas.

Maria levanta o rosto e se aproxima de João lhe dando um beijo sonoro, depois se volta para o lado da cama com o olhar de quem está perdida e pensativa...

João sai por traz dela falando:
- Eu fico trêmulo de prazer por esses beijos musicais e agradecido vou acariciar-lhe os cabelos para sempre e sua bunda redonda, quase sem tocá-los com os dedos.

João observando Maria na cama deitada e, com vagar, recita o poema.

João:
- Eu já senti sua alma tremer junto da minha, e já chorei ao ver a beleza do mundo passar como um sonho por trás dos seus olhos. Seus cabelos são macios e brilhantes. Suas costas possuem a textura das flores mais exóticas e sua bunda como uma fruta macia e polpuda me deixa com a boca aguada.

Maria:
- Meu coração transborda de felicidade.

João:
- Você surgiu ao meu desejo, talvez estivesse pensando as mesmas coisas que eu e por isso nos entregamos ao amor...

João vira-se para ela que está distraída, segura sua cabeça entre as mãos e depois, deslizando um dos braços em volta do seu corpo, puxa-a para junto de si, dizendo suavemente em seus ouvidos:

João:
- Em que você estava pensando? Conte-me!

Ela não respondeu imediatamente.

João nota que ela está soluçando.

João:
- Você está chorando Maria?

Então Maria em lágrimas, murmurou:

Maria:
- Estou pensando naquela canção...

Na trilha surge a canção do restaurante só com instrumental.

Maria libertando-se dele corre até a janela coloca as mãos no rosto.

João fica paralisado por um momento, perplexo, depois se aproxima dela.

Depois de alguns passos perguntou:

João:
- Que há com essa música? Por que a faz chorar?

Ela ergueu a cabeça e enxugou os olhos com as costas da mão como uma criança.

João, irritado:
- Por quê?

Maria:
- Estou pensando em alguém que, há muitos anos, costumava cantar essa canção...

João, com um sorriso falso:
- E quem era ele? 

Maria:
- Alguém que eu conheci quando morava com a minha avó...

O sorriso desapareceu do rosto de João.

Uma cólera surda condensou-se no fundo de sua mente.

Olhou para Maria e perguntou em tom sarcástico:

João:
- Alguém por quem esteve apaixonada?

Maria:
- Um rapaz que conheci... Cantava sempre essa canção e era muito sensível...

João ficou quieto...

Maria:
- Lembro-me bem dele... Ele tinha os olhos grandes e castanhos com muita expressão...

João, pensando:
- Oh! Então ainda está ainda apaixonada?

Maria:
- Não! Só passeávamos juntos, quando eu morava com a minha avó...

João, tentando ser frio, distante:
- Talvez por essa razão desejasse ir visitar sua avó...

Maria:
- Por que razão?

João:
- Como posso saber? Para vê-lo, talvez.

Ela desviou o olhar para a janela iluminada e permaneceu em silêncio.

Depois se voltando para João disse:

Maria:
- Ele está morto. Morreu quando tinha dezessete anos. Não é terrível morrer tão jovem?

João, aliviado:
- É!!! E... O que fazia ele?

Maria:
- Trabalhava na companhia de trem da cidade.

João procurou manter o tom de frio do interrogatório anterior, mas sua voz soou humilde e indiferente.

João:
- Suponho que esteve apaixonada por esse rapaz...

Maria, com a voz velada e triste:
- Queríamo-nos bem nesse tempo

João:
- Muito bem, por sinal... E por que morreu tão jovem?

Maria:
- Creio que morreu por minha causa...

Ao ouvir a resposta um vago terror apossou-se de João.

Maria:
- Foi no inverno, em um dia chuvoso, estava para deixar a casa da minha avó para vir morar na cidade. Ele estava doente e não o deixavam sair... Pobre rapaz que gostava tanto de mim e era tão gentil... Passeávamos juntos...

Calou-se um momento e suspirou

João:
- Bem, e daí?

Maria, extremamente triste, representa teatralmente a cena:
- Então chegou o dia em que eu ia partir..., ele havia piorado tanto que não me permitiram vê-lo. Por isso escrevi-lhe uma carta dizendo que ia partir e que voltaria no verão esperando encontrá-lo bem melhor... (parou um instante para controlar a voz e prosseguiu): ... Chovia muito na noite anterior à partida. Eu estava em casa de minha avó arrumando as malas, quando ouvi uma pedra bater na vidraça. Os vidros estavam tão embaçados que não pude ver nada. Desci correndo as escadas, vestida como estava, e dei furtivamente a volta pelos fundos da casa e lá estava o pobre rapaz, num canto do jardim, tiritando de frio.

João:
- E você não o mandou voltar pra casa?

Maria:
- Implorei que o fizesse; disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu-me que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! ...

João, aflito:
- E voltou para casa?

Maria:
- Sim. Voltou. E quando fez uma semana, eu já havia viajado, ele morreu... E no dia em que soube que ele... (silêncio) que ele estava morto...

 Maria calou-se sufocada em soluços.

Prostrada pela emoção atirou-se na cama com o rosto para baixo, soluçando e logo adormeceu.

João, contemplando a bela Maria que de tanto soluçar dormia:
- Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por você... Na certa não me contou tudo que se passou entre vocês dois, mas já não importa... Agora surgem as  dúvidas: será que você é realmente casada?

João caminha pelo quarto e depois vai para a sala.

Pela porta entreaberta, observa o quarto, a cama e Maria enquanto ela dormia.

João:
- Sinto-me novamente só. Um vazio esfria-me o corpo... Paralisia! Paralisia! Neste turbilhão de mentiras é como se eu nunca houvesse estado com você. Não fui eu quem primeiro possuiu o seu amor. Ó que desencanto! Eu me pergunto se haverá alguma loucura em mim. Ou será amor loucura? Num momento eu te vejo como uma virgem ou madona, pronta para ser amada e no momento seguinte vejo-te despudorada, insolente, seminua e obscena!

João veste-se e antes de sair escreve-lhe um bilhete deixando-o sobre a mesa da sala.

Maria acorda e lê o bilhete, arruma as suas poucas coisas e sai da casa de João.

João volta para casa.

João, narrando:
- Sai de casa bastante constrangido e aqui na rua, surpreendo-me ouvindo o som da minha voz. Tinha-me julgado elevado a uma estatura angelical aos olhos dela e à medida que se acercava, mais e mais, da natureza ardente de minha companheira, ouvia a estranha voz impessoal insistir na irremediável solidão da alma - Não podemos nos dar, somos de nós mesmo.

Seqüência 36 – Praia - Entardecer

Mar Templo Tempo
(titulagem em fundo negro)

O Mar bate nas pedras


Seqüência 37 – Casa – Dia – (João, Maria, Leopoldo)

O telefone toca. João pega o seu moderno videofone e observa a imagem dela chamando por ele insistentemente e João, mesmo olhando pelo visor o estado de tristeza de Maria, não atende a chamada.

Maria, no videofone:
- Meu amor por ti me leva a orar ao espírito da ternura e da beleza eterna de que teus olhos são o espelho... Isso me faz romper em lágrimas de piedade e amor por qualquer palavrinha sua. Tremo de amor por ti ao som de algum acorde ou cadência musical ou da lembrança de deitar-me contigo pé com cabeça sentindo meus dedos a acariciarem e fazerem cócegas no seu saco e depois meus lábios quentes chupando seu pau enquanto minha cabeça está inserida entre tuas coxas, com as mãos grudadas nos coxins redondos de tua bunda.  Lembro-me também que te ensinei a quase desmaiar quando ouves minha voz cantando ou murmurando à tua alma a paixão, a tristeza e o mistério da vida, e ao mesmo tempo ensinei-te a fazer trejeitinhos indecentes com a língua e os lábios, a excitar-me por meio de toques e ruídos obscenos. Não me abandones agora..., eu te amo...

Ele chora solitário ouvindo aquela declaração.

João, com o telefone na mão, manda um recado gravado para Maria:
- Não sei mais quem sou eu, quem é você?... Foi tudo muito rápido! Vou evitá-la por um tempo pequeno, tenho que pensar um pouco para entender tudo isso. Só o tempo necessário, para chegar a uma conclusão sobre a minha pessoa e depois encontramos novamente... Pode ser no nosso restaurante?...

João está no sofá com o seu videofone e liga a televisão novamente.

Leopoldo, repórter com câmera na mão:
- Homens guerreiros e bárbaros guiados por todas as religiões atacam os palácios de governos, prédios públicos do mundo inteiro são invadidos pelos revoltosos soldados da fé. Os deuses brigam entre eles para impor a verdade de sua fé. Muitos fogem com suas famílias para evitarem serem mortos pelos rebeldes fanáticos e por outras forças regulares de diversas ideologias que lutam entre si... O mundo está à beira do caos... Não saiam de casa... Protejam-se!

João, desligando a TV:
- Meu espírito, meu ser, em sua totalidade, neste momento de dor, rejeita todas as ordens sociais vigentes – rejeita o lar, a família, as virtudes reconhecidas, categorias humanas, doutrinas políticas e religiosas. Fodam-se todos!

No seu quarto

João deitado e pensativo na cama em que amou tanto Maria.

Não resistindo uma imensa vontade de reencontrá-la, pega o videofone e liga.

Mas ela não está...

No visor o rosto da Maria pedindo apenas para deixar recado.

Maria:
- Não posso atender agora... Deixe o seu recado que vou te encontrar...

João grava no videofone o seu recado.

Uma mão masculina pega no telefone e recebe o recado de João para Maria.

João, aparecendo no visor:
- Maria, meu amor onde você mora, eu quero lhe ver novamente. Retorno à vida monótona de sempre..., precisamos conversar..., sinto sua falta..., uma semana para mim está sendo uma eternidade. Perdoa-me se for possível. Sinto a sua falta... Se você sofreu muito nestes dias, eu também sofri. Sei que você é o único raio de luz que nestes últimos anos atravessou a obscuridade de minha vida..., hoje tenho um desejo tão louco do teu corpo que se estivesses aqui ao meu lado e mesmo que me contasses com tua boca que metade dos cafajestes deste maldito mundo tinha trepado contigo antes de mim eu ainda assim me atiraria em ti com ardor...

Tempo Tempo Tempo
(titulagem em fundo negro)

João deitado esperando com o videofone na mão.

Levanta-se da cama e sai de casa.


Seqüência 38 – Restaurante – Entardecer (João)

João apressado, desesperado, entra no restaurante vazio na esperança de reencontrá-la.

João senta-se em uma mesa.

Em outra mesa está uma folha de jornal.

Ele a princípio não dá atenção ao acontecido, absorto que estava em seus pensamentos.

Mas abruptamente ele se levanta e sai do restaurante carregando a folha que estava na outra mesa.


Seqüência 39 – Casa – Noite (João)

João chega a sua casa e deixa a folha de jornal na mesa da cozinha e prepara uma bebida.

Abre a garrafa de vinho, pega uma taça.

Senta-se na sua cadeira, coloca a taça de vinho e a folha do jornal na mesa.

Serve o vinho bebe.

Come um pedaço de queijo.

Abre o jornal.

Ascende o seu charuto.

A noite chega.

A lua cheia brilha no céu com nuvens esparsas e sua luz se esparrama nas cristas de um mar agitado.

João, com a taça do vinho na boca, olha para a manchete estampada na página do jornal e se assusta com o que lê na manchete. Deixa cair à taça de vinho no chão...

João então liga seu laptop e procura os noticiários na tela.

Morte Trágica
Manchete da página de um jornal com retrato da Maria
A MORTE DE MAIS UMA MARIA NOS TRILHOS DO BONDINHO

João lê movendo os lábios como um velho a murmurar as preces do breviário.

João, lendo a manchete:
- Morreu hoje Maria, uma jovem e bonita mulher, na estação do bondinho...


Seqüência 40 – Estação do Bonde – Dia (Leopoldo, O marido, João)

As imagens são na estação do bondinho com Leopoldo entrevistando o marido de Maria.

Leopoldo, repórter:
- As evidências indicam que a vítima, ao tentar transpor as linhas, foi atirada ao chão...
O condutor colocou a máquina em movimento e segundos depois, brecou-a, mas era tarde... Trágico acidente! Uma passageira afirmou que viu a mulher pulando em frente do comboio assim que ele deu a partida...

Leopoldo, repórter:
- O capitão, marido da jovem, prestou depoimento...

O Marido:
- Eu me encontrava fora da cidade no momento do acidente... Sim! Éramos felizes até semanas atrás quando minha mulher começou a se descontrolar, saía de casa a noite para comprar bebidas... Nunca havia feito isso... Tentei alertá-la para o perigo da bebida e de não sair para rua bêbada, mas não houve jeito dela escutar... A cada noite que ela passava neste estado, nada me dizia, depois saia para rua voltando algumas vezes para casa e outras não retornando, não dando notícias... Eu já estava desesperado com o que estava nos acontecendo...

João com o jornal na mão desliga o videofone.

João:
- Então ela era mesmo casada e esse era o seu marido! Que sujeito estranho...

Paixão  Solidão
(titulagem em fundo negro)


Seqüência 41 – Praia – Dia (João, Maria)

Na Praia.

João relembra vários planos da Maria na praia erguendo os olhos e fitando o mar agitado.

João, narra:
A alma dela! O nome dela! Seus olhos! Eles são para mim como estranhas e belas flores selvagens azuis que crescem no campo sobre os ramos secos emaranhados e encharcados de chuva.  

Na mesma praia, mas próximo do mar,o Velho Padre anda ao amanhecer.

Uma gaivota plaina contra o vento na arrebentação.

João recorda dos belos momentos que havia passado com Maria.

João:
- Estou só, sem escolta, sem amigos, solitário e indiferente a tudo que possa agora me acontecer.Que morte estúpida, morreu sem me dizer onde morava. Que bela mulher. Que imbecil que eu fui.

Começou a sentir-se mal.

Senta-se na areia olhando para as gaivotas, se levanta e fala para o mar.

João, clamando:
- Meu Deus! Que outra atitude eu poderia ter tomado? Seria incapaz de levar adiante uma comédia; Maria eu não poderia viver com você depois que ouvi a sua história... Afastei-me de você e assim fiz o que eu achava melhor... É da minha natureza. Que culpa tem o eu que ignora? Agora que morrestes, me arrependo de tudo... Imagino a intensa solidão que devia ter vivido para se matar daquela maneira...


Seqüência 42 – Casa – Dia (João)

João entra na sala de sua casa, na mesa a máquina de escrever ao lado do notebook.

Coloca o jornal na mesa com a foto da Maria estirada na linha do bonde.

João:
- Coitadinha! A mesma estação em que nos encontramos... Ela quis me castigar! Porque ela não atendeu o meu telefonema? Não recebeu o meu recado?... Maria para mim também está reservada à solidão até o dia da minha morte, quando tudo se tornará uma simples recordação... E alguém de mim se lembrará?

João fecha o computador e sai de casa...  


Seqüência 43 – Rua – Entardecer (João, Maria)

A noite vem chegando e a lua nasce no horizonte.

João está na porta do restaurante quando começa a ouvir uma voz misturada ao ruído do bonde.

João, narrando:
- Esse som! Esse som! Parece que ela, como um fantasma, caminha ao meu lado na escuridão.  A voz dela roça o meu ouvido e suas mãos me tocam.

João entra no bonde que está parado na estação;

Maria aparece sentada nos bancos do bonde vazio..

Maria:
- Por que me recusara à vida? Por que me condenara à morte? ...

João:
- Ó Maria! Estou tão arrependido...

Um casal de namorado entra no bonde se beijando.

Maria:
- O arrependimento não perdoa e nem refaz o passado, é certo que nunca mais nos veremos, pelo seu moralismo amoroso você rompeu com tudo que tínhamos em comum.


Seqüência 44 – Casa – Amanhecer (João)

João está deitado na cama do seu quarto adormecido.

A noite passa, o sol brilha na janela.

Já é dia.

João acorda com o sol em seu rosto.

Levanta-se da cama e caminha até a janela onde observa a cidade.


Seqüência 45 – Rua – Dia (João)

Na rua em frente da janela de sua casa João assiste um casal de namorado que passa se beijando.

João, narrando da janela:
- A visão destes amores furtivos e venais, me enche de desespero. Sinto-me banido da festa. Uma mulher talvez me tivesse amado e eu lhe negara vida e felicidade condenando-a a ignomínia, à morte vergonhosa...

João fecha a janela entra na sua casa.


Seqüência 46- Casa – Dia (João, Maria)

João entra no banheiro para tomar um banho e fazer a barba.

Maria está deitada na banheira.

No banheiro da casa João em frente do espelho mergulhava o pincel no vaso e ensaboava bochechas e pescoço falando para Maria que está na banheira.

João:
- Precisamos ir a Atenas. Você virá?

Maria:
- Virá você, mirrado jesuíta?

João barbeia-se com cuidado olhando para Maria na banheira se ensaboando.

João:
- Minha família crê que você morreu. Eis a razão por que ela não quer que eu me dê com você.

Maria:
- Alguém me matou?

João:
- Você podia ter-se ajoelhado, que diabo, quando seu marido lhe pediu... Há alguma coisa de sinistro em você...

Maria:
- Paralisia geral é a nossa demência. Não estou aqui? Contemple-me! Seu bardo execrável.

João:
- A fúria do homem por não poder ver a própria imagem no espelho... Sou um fantasma! Por Deus, se ao menos você e eu pudéssemos estar juntos...

No banho, no chuveiro, o seu rosto muda de expressão e ele conclui o seu pensamento...

João, refletindo e concluindo com euforia:
- Mas e se em vez de ter se matado ela tenha sido mesmo morta. Assassinada... Sim!

Quem Foi?
(titulagem em fundo negro)


Seqüência 47 – Dia - Estação do bondinho na Lapa (Maria, Marido)

Cena muda.
 O marido da Maria, não se vê o rosto, com o videofone na mão, está na estação do bondinho quando se aproxima dele Maria. Ela olha para ele. Ele se aproxima e lhe entrega o aparelho com o recado do amante. Ela olha para ele. Ele sai de cena... Maria então cai no trilho do bonde.

Seqüência 48 – Casa- Dia (João)

João sai do banho.

Ele veste a roupa com rapidez...

Sai apressado.

SIMONIA
(titulagem em fundo negro)

Seqüência 49 – Rua – Dia (João)

João anda pela rua e entra em uma igreja muito bem iluminada.
Ele está sozinho, nervoso.


Seqüência 50 – Igreja – Dia (João, Coral de vozes, Velho Padre)

Igreja

Quando ele chega ao centro da nave da igreja, todo ambiente vai escurecendo como se a noite chegasse de repente.

Coral de vozes:
- O que fez você voltar à casa paterna?

João:
- Sinto-me culpado de omissão...

Coral de vozes:
- Sim! Ela não foi assassinada.

João:
- Eu só não queria me sentir o culpado dessa dolorosa morte...

Coral de vozes:
- Ninguém te acusa de nada.

João:
- Mas isso não resolveria o meu terrível sentimento de solidão... É preciso fazer justiça! O que está acontecendo com o mundo?

Coral de vozes:
- Os homens tendem a viver como se cada momento fosse o próximo.     

João:
- Só tenho uma certeza: ela foi morta pelo marido e ninguém faz nada! Não temos justiça? São todos cegos e surdos? Porca miséria! Ando me sentindo muito mal. Oh meu Deus! Não tenho mais certeza de nada...

Coral de vozes:
- Ninguém presta à sua geração maior serviço do que aquele que, seja pela sua arte, seja pela sua existência, lhe proporciona a dádiva de uma certeza.

João, caindo de joelho no altar:
- Oh Pai! Quero me dispor de todos os luxos e ofereço-me a ti como um soldado, fiel aos seus dogmas e princípios. Guie-me com humildade nos teus caminhos e não me deixai perdido novamente.

Templo Templo Templo
(titulagem em fundo negro)

O Velho Padre está na catedral, agora de barba toda branca, bem mais velho, vestindo a mesma roupa preta de um jesuíta e usando o tapa-olho.

Em sua volta estão cadeiras de uma igreja vazia.

Ele comporta-se como se houvessem pessoas ali sentadas e pra elas fala:

Velho Padre:
- Entreguei a Deus todos os meus bens, a minha vida, a minha alma e o meu passado.

Coral de vozes:
- Uma criança criada pela ordem dos jesuítas jamais pode nos abandonar...

Velho Padre:
- Vocês querem saber a minha opinião sobre os Jesuítas que me criaram? Vocês são entre todas as outras a maior Ordem da Igreja, a que tem maior tradição...  Mas vocês não possuem o meu amor... Nos meus sermões eu já falava sobre isso.

Coral de vozes:
- Não é você quem dizia debochando que quando se quer uma coisa bem feita, como comprar ou vender coisas espirituais, indulgências e sacramentos, temporais ou não, como alguns benefícios eclesiásticos, procure sempre um jesuíta.

Velho Padre:
- Mas todos os dogmas da religião estão ruindo com o passar do tempo... Vocês e a ciência enfraqueceram a igreja...

Coral de vozes:
- Todas as outras ordens da Igreja sofreram reformas numa ou noutra época; a ordem dos jesuítas nunca. Ela jamais enfraqueceu... 

Velho Padre:
- Mas é como dizem os revoltosos: vocês não chegam mais a alma do povo... Os Jesuítas hoje e sempre só supriram as necessidades espirituais das elites.

Coral de vozes:
- É por isso que você nos admira...

Velho Padre:
- Estamos perdendo a cada dia mais fieis para as outras igrejas que oferecem maiores dádivas que a sua anda oferecendo, as religiões estão se proliferando com a descoberta do ouro dos incautos.

Coral de vozes:
- Mas a nossa religião é a Religião, a primeira, a verdadeira fé...

Velho Padre:
- Com o tempo a minha ideia de religião, de fé, tornou-se outra. Eu me transformei e vocês é que provocaram isso.


Seqüência 51 – Rua – Dia (Velho Padre, Homem do bar, Lúcia)

O Velho Padre sai da igreja e anda pelas ruas da cidade com uma pequena malinha e um livro.

Ele entra num boteco e pede uma cachaça.

Toma de um gole só. Pede e bebe outra.

O homem do bar pergunta para ele: - O senhor é padre?

Velho Padre:
- Há anos deixei a Igreja Católica, tendo por ela o ódio mais fervoroso. Foi-me impossível ficar dentro dela devido aos impulsos de meu gênio. Quando ainda era estudante declarei-lhe uma guerra secreta e recusei-me a aceitar as posições que ela me oferecia... Hoje estou pobre e só tenho essa roupa. Você conhece algum lugar onde posso me hospedar?

As Três Irmãs
(titulagem em fundo negro)

O Velho Padre, com sua malinha e seu livro, chega à rua já sua conhecida onde fica a velha casa.

Ele passa pela frente da casa e olha para a janela... 

A janela emoldura o rosto de Lúcia que o chama.

Lúcia:
- O senhor está precisando de quarto? Nós temos um que o senhor vai gostar...

Ele entra na casa.


Seqüência 52 – Casa- Dia (Velho Padre)

O Velho Padre de barba, tapa-olho e cabelos brancos, está na cama do seu quarto quando entra Lúcia, que estava na janela e o chama com um prato de sopa e um pão.

O Velho Padre come o pão com volúpia, bebe a sopa com avidez, depois estica o corpo e fecha os olhos.


Seqüência 53 – Praia – Noite (João, Maria)

É noite de lua no mar.

João está despenteado pelo vento.

João está parecendo um louco.

Maria se aproxima.

Eles se beijam.

João observa Maria deitada na areia da praia e passa a brincar com ela passando a mão no seu corpo.

João, teatral:
- Nesta noite inesquecível tua bunda estava cheia de peidos, e com a foda eu os fiz sair, grandes e gordos, prolongados e cheios de vento, estalinhos rápidos e alegres e uma porção de peidinhos pequeninos e travessos que terminavam num jorro demorado por teu buraco rosado. É maravilhoso foder uma mulher peidorreira quando cada metida faz sair um.  

 Maria, sensual:
- Meu bem, neste instante, depois de tudo que você me disse, molhei a minha calcinha e estou pronta para ti amar loucamente mergulhada neste mar profundo.

O mar bate forte nas pedras.


Seqüência 54 – Casa – Noite (João, Sylvia, Nora, Lúcia, Leopoldo)

Na casa

João acorda assustado.

João sai do seu quarto, passa pela sala e vai para a rua.

A família está reunida na sala.

 Leopoldo está nervoso na sala.

Ele sai andando com passos fortes pelo corredor que vai dar na rua.


Seqüência 55 – Rua – Noite (João, Leopoldo, Velho Padre)

 Leopoldo sai na rua e encontra-se com João. Leopoldo está com sua câmera..

Leopoldo entrevista João:
- Você já tem namorada?

João, insolente:
- E quantas têm você?

Leopoldo:
- Na sua idade eu já tinha tido muitas... Todo rapaz tem uma namorada... Você é gay?

João com violência derruba a câmera de vídeo dele no chão.

João sai andando enquanto Leopoldo tenta pegar a sua câmera no chão.

Tempo Fugido Templo
(titulagem em fundo negro)

O Velho Padre passa na rua e olha para a cena.

Velho Padre:
- Você mora nesta casa?

Leopoldo:
- Moro com a minha família...

Velho Padre:
- Parece uma casa grande de uma grande e boa família...

O Velho Padre então entra na casa carregando a malinha com suas coisas e seu livro.

Leopoldo com raiva joga a câmera varias vezes no chão.


Seqüência 56 – Casa – Noite (Velho Padre, Silvia,Nora, Lúcia, Leopoldo, João)

Velho Padre e a família na sala, as três irmãs olham para ele.

A comida é passada em um prato para o Padre.

Sua boca está paralisada, fazendo a comida cair na mesa.

Sylvia:
- As suas histórias são frutos de alguma obsessão?

Velho Padre:
- Eu não tenho obsessões escrevo todas nos meus livros! Estudei e me formei com os padres Jesuítas na Irlanda... Estou velho e um pouco mais louco por um lugar tranqüilo onde eu possa continuar escrevendo...

Leopoldo entrando na sala:
- Está explicado! Foi por isso que você voltou?

Lúcia:
- Fez muito bem em voltar...  

Leopoldo:
- Não! Não estamos aqui para lhe fazer uma psicanálise ou mesmo um interrogatório...

Velho Padre:
- Psicanálise? Se tivesse necessidade dela, podia ter ficado com a confissão dos jesuítas, ou com o exorcismo dos pastores cristãos, ou me benzer nos sons dos tambores africanos. Interrogar-me você pode, só não saberei responder...

Leopoldo:
- Estou de boca aberta – é a revolta da fé que se avizinha?

Nora:
- Vamos deixar esse assunto prá depois... O nosso hóspede é um guerreiro de Deus que voltou a casa e está visivelmente cansado precisando acabar de tomar a sua sopa para depois descansar da longa jornada.

Velho Padre fica paralisado de um lado do rosto e a sopa lhe escorre pelo canto da boca.

As três irmãs correm para ajudá-lo...

O Velho Padre está deitado na cama doente, já bem mais envelhecido.

Tempo Loucura Tempo
(titulagem em fundo negro)

O Velho Padre está sentado em uma cadeira dormindo de boca aberta no quarto com janela que da pra rua.

Neste ambiente sombrio é onde ocorre o encontro de João com o Velho Padre.

O rosto do Velho Padre não aparece, sempre está na sombra em contraste com o ambiente e a retratação do personagem. 

Velho Padre:
- O que eles falam de mim?

João:
- Debocham, dizem que você está ultrapassado... Superado!

Velho Padre:
- E o que você responde?

João:
- Digo que se você ainda não foi nem compreendido como pode estar superado?

Velho Padre:
- Muito bom... A mordacidade tem um sentido particular para minha mente supersticiosa – não tanto pela qualidade ou o mérito daquilo que sou..., mas pela vulgaridade do homem, a rebentação obscena de seus pensamentos e de seus sonhos, a sua senilidade, o seu céu e a sua lama, seus altos e baixos...

João:
- Porque o senhor voltou para casa?

Velho Padre:
- Por que na rua eu me sentia exilado...

João:
- Exilado no seu país? Na sua cidade? Na sua casa?

Velho Padre:
- Mas você não se lembra de como é que o filho pródigo foi recebido pelo irmão na casa paterna? É perigoso abandonar sua pátria, porém é ainda mais perigoso voltar para ela, pois então seus compatriotas, se puderem, lhe enterram uma faca no coração.

João:
- Não diga isso!

Velho Padre:
- Sim! O autor é apresentado ao público como um artista libertino e um intelectual debochado... Ninguém lhe da o crédito. Torna-se um marginal.

João:
- Ninguém pode amar sinceramente a verdade e o bem se a multidão não lhe causar horror, e o artista, que pode tirar partido da loucura, está impaciente para se isolar dela.

Velho Padre:
- Percorro o meu caminho sozinho, sem me preocupar com nenhum juiz, nem com nenhum obstáculo. Espero não cometer mais nenhum erro...

João:
- O gênio não comete erros... Com eles abrimos as portas da experiência... A língua é escrita e é falada na contribuição de todos os erros.

Velho Padre:
- O gênio escancara as portas por onde mais tarde entrará o vacilante bibliógrafo careca, assíduo, de longas orelhas e do pé mole que range suavemente..., é bom que ele saiba de pronto - eu nunca tomei parte nas lutas do meu país..., nesta terra a mão do homem nunca pisou.

Os dois dão gostosas gargalhadas.

Velho Padre:
- Quando o artista ri se lembra, ativa a memória, é porque ele está criando. Da mesma forma como o nosso corpo é feito e desfeito dia após dia pelo trabalho de uma tecelã que tira e acrescentam os fios que o compõem, também o artista destrói e recompõe a cada dia sua própria imagem.

Silêncio.

Velho Padre:
- Talvez seja nosso destino saber jogar suficientemente bem com as palavras, que são antes nossos senhores do que nossos escravos.

Silêncio.

João:
- Não se conversa nos sonhos e fico pensando de quem ouvirei tudo aquilo que eu mais preciso saber?...

Velho Padre:
- O pão que uma criança sonha estar comendo não pode ser o mesmo pão que ela come quando está acordada, porque a criança não podia transportar para o sonho todas as qualidades do pão e que, portanto, o pão do sonho não podia ser feito da mesma farinha...

Silêncio.

João:
- No sonho a palavra se altera para melhor aderir ao objeto e dispensa qualquer comentário.

Seqüência 57 – Praia – Dia (João, Maria)

João em frente do mar bravio olhando ao longe Maria andando a beira mar.

João, de frente para o mar:
- Inelutável modalidade do visível: pelo menos isso, se não mais, é pensado através dos meus olhos... Se então se pode por os cinco dedos através, é porque é uma grade, e não uma porta. Fecha os olhos e vê.

João, contempla o por do sol no mar:
- À tarde de verão começara a envolver o mundo em seu misterioso amplexo. Bem longe no oeste o sol se punha e o último fulgor de um mui fugaz dia apegava-se amorosamente ao mar e areal, no garboso promontório velho e querido a guardar como sempre as águas da baía, as rochas planticobertas ao longo da costa e, enfim mas não menos, a tranqüila igreja de onde fluía por vezes na quietude a voz de prece àquela que é na sua pura irradiância sempre um fanal para o coração tempestivo do homem, Maria, estrela do mar.

Maria anda a beira mar.
João a contempla.

João:
- Quisera ter um óleo de corpo inteiro dela... Janeiro era também o mês quando a cortejei. O ano se repete. A história mesma se repete. Calor, vida, amor, viagem ao redor do teu pequeno mundo. E agora? E depois...


Seqüência 58 – Casa – Dia (Leopoldo, Velho Padre, Silvia,Nora, Lúcia)

Leopoldo entra na sala levando flores.

Leopoldo:
- O sol azul brilha tanto lá fora que não se podem expor os homens aos seus raios mortíferos. A que ponto nós chegamos!... Se dissermos que o sol apagou, todos acenderão velas.

 Leopoldo volta a sentar-se à cadeira e recomeça com a comilança.

João entra e no interior da casa, onde continuam as mesmas pessoas comendo e comentando o acontecido.

Ele entra em cena, mas ninguém o observa.

Todos ali continuam com suas velhas conversas em uma língua incompreensível.

Nora:
- Deus tenha misericórdia de sua alma!

Lúcia:
- Foi sempre tão escrupuloso, mas os deveres foram pesados demais para ele e sua vida foi, pode-se dizer um mistério, não levava uma vida normal...

Sylvia:
- Sim, era um homem desiludido. Percebia-se isso.

Leopoldo:
- Aquele cálice que ele quebrou... Foi o começo de tudo...

Lúcia:
- Eu disse que ele não tinha culpa, que a culpa foi de outro, mas o pobre homem era tão nervoso! Que Deus tenha piedade dele!

Sylvia:
- A morte de Maria perturbou-lhe a mente. Ficou desorientado. Divagava, não falava com ninguém. Certa noite ele foi procurado e não foi encontrado em lugar nenhum...  Aí se descobriu que ele estava aqui sentado, sozinho, olhos arregalados e rindo consigo mesmo...

Leopoldo:
- Ele tinha os olhos arregalados e ria sozinho... Estava louco! Lá, no fim do mundo, os padres jesuítas irlandeses, ao verem isso, pensaram logo que alguma coisa não andava bem com ele... Foi esse o motivo que fez ele voltar.

(Efeito)

A luz azul volta a iluminar a cena.

O Velho padre está chegando aonde se encontram duas velas que ilumina o seu rosto.

Ele então olha para o rosto e descobre sem surpresa que era ele mesmo João.

O Velho Padre fica a princípio transtornado e com o rosto suado e diz para João quando se acalma limpando com o lenço o suor do seu rosto...

Velho Padre:
- Nada mais nos resta a fazer...


Seqüência 59 – Rua – Entardecer e Noite (Velho Padre)

É Noite.

A imagem dele se afasta lentamente até a escuridão.

O Velho Padre sai da casa, e depois caminha firme, lentamente, pela rua escura do mesmo plano inicial.
O relógio da igreja marca 24 horas.

Silêncio.

A rua está vazia.                                                                                    


FIM