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quinta-feira, 2 de abril de 2009

UM AMOR IMPOSSÍVEL

UM AMOR IMPOSSÍVEL


Roteiro cinematográfico de José Sette
Registrado na Biblioteca Nacional

Este roteiro é uma adaptação livre e cinematográfica do romance "A Mortalha de Alzira" escrito por Aluisio Azevedo no final do século XIX.

Sobre o autor do romance:
Aluisio Azevedo nascido a 14 de abril de 1857 no Maranhão, escreveu uma obra que foi em sua época um grande sucesso de público - O Mulato, O Cortiço, Casa de Pensão, etc. - romances repletos de crítica à vida provinciana e a sociedade conservadora. Aos 19 anos, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde o irmão Artur de Azevedo já fazia sucesso com suas peças teatrais. Suas obras, até hoje, têm ocasionado as opiniões mais desencontradas da crítica especializada. Mas o grande público, continua lendo sempre seus romances e contos com grande curiosidade. Anticlerical e diplomata, simpatizante da Escola Realista, foi um fino observador dos costumes de sua época, procurando retratar a burguesia e estudando os seus tipos, como o mau sacerdote e a mulher histérica, caricaturando as pessoas, as coisas e as cenas vividas por seus mais diversos personagens. Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Escreveu o romance "A mortalha de Alzira", sob o pseudônimo de Vítor Leal, em forma de folhetim, no jornal Gazeta de Notícias, de 13 de fevereiro a 23 de março de 1891. Em 1892 o texto foi publicado em volume, alcançando muito sucesso em sua época. Foram vendidos 10.000 exemplares em três anos, o que, foi considerado um recorde. Aluisio Azevedo morreu em 21 de janeiro de 1913 na cidade de Buenos Aires.

Sobre a adaptação cinematográfica:
O romance "A Mortalha de Alzira" foi escrito como folhetim na imprensa da época. O tema retratado era por demais polêmico para que toda a trama da estória acontecesse aqui no Brasil. Assim, o autor, localizou toda a ação na influente corte francesa, no período do reino de Luís XV, século XVIII, nos arredores de Paris - era o fino da nobreza européia que a burguesia brasileira tanto apreciava e imitava. Com esse pano de fundo, o autor estaria livre para tratar do assunto à sua maneira, sem se preocupar com os moralistas e conservadores que comandavam a imprensa, a igreja e o país no final do século XIX. O mote polêmico desse romance era a eterna luta entre a fé e o erótico. Notei, quando reli o romance, que o genial Aluisio, tinha domínio, a meu ver, e conhecia, pois experimentara com sua família na cidade de São Luiz, da maledicência, da infâmia, da petulância provinciana de uma sociedade ignorante e colonizada. Engenhoso na arte da escrita, ele buscou, com todo o seu gênio criativo, o profundo da alma humana, o desconhecido, o oculto. Rompia com esse folhetim, definitivamente, com toda a influência que Eça exercia sobre ele. Escrevia de maneira única e inovava, principalmente nos diálogos, apresentando nesta obra os traços do movimento surrealista que iria explodir na Europa alguns anos depois. Nascia assim, passo a passo, em um folhetim, um universo literário muito além do seu tempo. Li, ou melhor, vi, de estalo, que ali estava à essência para a criação de um roteiro cinematográfico, não de época, mas contemporâneo. Trabalhando com liberdade em sua adaptação para o cinema. Mudando os nomes dos personagens e criando outros, acrescentando e retirando, adaptando e misturando as ações, retocando as cenas com ingredientes da escola modernista, surrealista e expressionista, conforme as necessidades de um novo contexto em que a estória se insere, escrevi um livro e depois o roteiro de "Um Amor Impossível".
UM AMOR IMPOSSÍVEL

Principais personagens

1 Ângelo (o ator, cantor e padre): 2 Santeiro ( Frei Ozéas):
3 Mateus (pianista): 4 Nicodemos - médico.
5 Sinésio (garçom ): 6 Desidério (empresário):
7 Simão (segurança): 8 Madalena: (bailarina)
9 Ésquilo (diretor do espetáculo): 10 Salomé (criada)
11 Demônio dourado 12 Cavalheiros
13 2 casais 14 Jerônimo
15 Damas 16 Bailarinas
17 2 Beatas 18 Mulher e cria
19 Bandidos 20 2 homens
21 2 mulheres 22 Coadjuvante


PRIMEIRO MOVIMENTO


Seqüência 1 - Interior - Noite - Palco de Teatro

Introdução
Silêncio. Ésquilo, um jovem diretor de teatro, entra no palco iluminado por um spot de luz e, com um cajado na mão, dá as três batidas de Molière anunciando o início do espetáculo.

Ésquilo:
- "Os cadáveres amontoados, na sua linguagem muda, revelarão aos olhos dos mortais, até a terceira geração, que o homem não deve ter sentimentos orgulhosos, pois a mulher, ao amadurecer, produz espigas de erro e a seara ceifada será tão-somente de lágrimas".


Seqüência 2 - Exterior - Noite - Cidade de São Paulo

Início da música tema. A cidade iluminada, vista do alto em toda a sua grandeza. (Grua). Por entre os prédios, relâmpagos iluminam as nuvens escuras. (grua com carrinho). Aos poucos vem surgindo o cemitério no alto da colina. Um carro velho está estacionado na rua escura. Uma sombra azulada passa nele - É à sombra de Ângelo, um rapaz assustado que anda pela rua deserta. Ao fundo da ação pode ser visto o cenário das luzes da cidade. Começa a chover. O rapaz chega a um cruzamento de ruas. Alguns mendigos estão reunidos perto de uma fogueira. Faz frio. Ele se aproxima de outro cruzamento, de uma rua mais movimentada, onde passam alguns carros. A cidade começa a tomar vida. O clima é de sonho, mas chove lá fora. Chove a cântaros.


Seqüência 3 - Exterior - Noite - Ruas da cidade

Agora na movimentada rua segue ele caminhando apressado, fugindo da chuva, em busca de um lugar seguro. (Titulagem do Filme, sobre imagens e música tema).


Seqüência 4 - Interior - Noite - Bar e Café

Ângelo, correndo da chuva, entra em um café que está cheio de jovens conversando e bebericando - alguém toca um violão - em outra sala existem alguns computadores funcionando. Ele senta-se em frente de um monitor e passa a navegar na Internet. Daquele lugar ele podia observar a porta de entrada do bar. Logo em seguida entra no café Mateus, um rapaz elegantemente vestido, acompanhado de um senhor, Desidério, e de Simão, seu jovem segurança. Logo depois entra no café, fazendo algazarra, um casal de namorados vestindo roupas futuristas. Ângelo, sem olhar no monitor, ouve a conversa entre o músico e o empresário. Eles conversam formalmente. O empresário reclama da ausência do ator e cantor e da necessidade de se encontrar um substituto para dar continuidade aos ensaios do grande espetáculo. Ângelo então se aproxima dos dois e se apresenta como ator e cantor e que está disposto a substituir o ausente. Mateus olha para Desidério e convida o rapaz para um teste.


Seqüência 5 - Exterior - Noite - Rua do Teatro

A chuva havia aumentado. Todos saem do café e seguem em direção do teatro que fica na mesma rua. A calçada está movimentada na frente do prédio. Muitos jovens vestidos com roupas escuras, uns estão apaixonados e formam vários casais de namorados e outros são solitários, são um pouco desfigurados, fora de época, seus rostos estão tristes, são pálidos e de olhos fundos. Todos entram no Teatro


Seqüência 6 - Interior - Noite - Teatro

O palco do Teatro é uma espécie de restaurante, com mesas e cadeiras e ao fundo, em um lugar com o assoalho mais alto, fica um piano e uma bateria. No outro lado do restaurante estão sentados dois homens: Um bem velho e o outro, bem mais novo. O velho é o primeiro a falar.

Santeiro:
- Aqui está o livro Nicodemos! Você pode não acreditar, mais ele tem muito mais de um século.

Entra Sinésio, o garçom, com a xícara de café.

Santeiro:
- Sinésio! Cuidado com o café, não vá sujar as páginas da história!

Entrega o caderno para Nicodemos.

Santeiro:
- O tenho sempre do meu lado, é meu tesouro, peça única de um passado de glória. Guardo com orgulho na memória, nos pequenos detalhes, cada uma de suas 66 páginas. Demorei minha vida decifrando esse enigma, tenho ele dentro de mim e por isso posso agora passá-lo.

As páginas do livro passam com o vento. Santeiro recita de cor as duas páginas abertas ao acaso do manuscrito... Nicodemos está assustado.

Santeiro:
- É um livro mágico; a cada página surge, brota, exala, exalta-se o Paraíso. Materializa-se em poemas raros. Os textos tornam-se luz. Uma luz tão forte que é capaz de cegar. São os espíritos da história saindo dessas linhas, traços de pemba, códigos secretos da terra, que sempre me encantaram e que me fizeram ver... Viver, ser vidente. Um livro que pode mudar sua vida, você já pensou nisso?

Os olhos de Santeiro brilham. Os textos digitalizados passam com rapidez pelos olhos azuis de Nicodemos:

Santeiro:
- Nicodemos, basta um olhar! Você consegue sentir sutilmente o tempo passando cada vez mais lento? Consegue? É o seu passado vindo. Abra em outra página, o tempo deixa de existir e você torna-se objeto do texto, todas as palavras escritas te dizem algo, exprimem sentimentos, criam imagens... É o futuro!

Nicodemos (fechando o livro):
- Chega Santeiro! Aqui tem bruxaria! ...

Silêncio.

Nicodemos:
- É estranho, senti um perfume suave na primeira página, depois fiquei com medo. Conte-me como você consegue ler todo o livro sem desmaiar? O perfume vai ficando forte e depois das primeiras páginas fortíssimo... Insuportável... Diabólico.

Nicodemos devolve o livro para Santeiro.

Nicodemos:
- Pensa o quanto você quer pelo livro?

Santeiro fica calado. O Garçom se aproxima com uma garrafa de Conhaque e dois charutos.

Nicodemos:
- Você pode pensar o tempo que quiser... Não saio daqui sem levar o livro.

Santeiro serve-se do conhaque e do charuto.

Nicodemos:
- Estou disposto a pagar qualquer quantia... Que besteira! Será que fui enfeitiçado?

Santeiro guarda o livro em uma caixa de prata.

Nicodemos:
- Sabe! Quando eu soube desse encontro, eu não acreditei... Você me desculpe Santeiro, mas passar este livro que lhe trouxe fortuna e felicidade é no mínimo burrice... O que aconteceu na sua vida? Você não ficou tão pobre, homem de Deus, que precisa vender o seu tesouro!

Santeiro permanece calado.

Nicodemos:
- Posso pegar novamente no livro?

Santeiro, depois de um momento, olhando para Nicodemos, empurra a caixa de prata para perto dele. Nicodemos acaricia o objeto cultuado.

Nicodemos:
- É antes de tudo um belo objeto de desejo... Embora a prata tenha a temperatura mais baixa, o livro permanece quente... é como se um fogo existisse em seu interior. É extraordinário! Mas o perfume! ...

Santeiro:
- Nicodemos, lembre-se! Não é você que escolhe o livro, ele é que escolhe você. Eu não sinto perfume nenhum, aliais, nunca senti...

Ângelo, Mateus, Desidério e Simão entram no restaurante.
Ésquilo, o diretor, se aproxima.

Ésquilo:
- Vocês estão atrasados! O que aconteceu?

Desidério:
- Perdemos o cantor, foi preso pela polícia... Temos um postulante par o seu lugar - Ângelo é seu nome...

Ésquilo:
Foi preso, como?! ... Não importa, ele era mesmo um péssimo ator, embora fosse um bom cantor,... Pelo menos você tem uma cara melhor! Mas antes precisamos ensaiar algumas músicas. Mateus! Vamos ao piano! Vamos ver o que o rapaz tem para apresentar!

Ângelo sobe no palco e inicia o seu espetáculo. Ele tem desenvoltura. É jovem e belo. Seu olhar é penetrante e sua presença no palco é tão forte que todos ali passam a observá-lo.

Ângelo:
- Eu tenho uma canção que gostaria de cantar... É um bolero, pode ser? Se vocês não gostarem eu não preciso repetir... Tá bom? Então vamos lá...

Ângelo canta um bolero de amor. Mateus, o pianista, enfeitiçado pela presença do ator/cantor, passa a acompanhá-lo. No transcorrer da interpretação as bailarinas vão chegando. O ensaio vai crescendo e todos participam do espetáculo. Santeiro segura com firmeza a caixinha de prata que guarda o livro mágico. Nicodemos tenta por a mão na caixa... Santeiro não deixa. Desidério se aproxima da mesa olhando e apontando para a mão de Santeiro.

Desidério:
- Santeiro você sabe muito bem do meu interesse por esse livro. Esse é o motivo principal da minha presença nesta casa. Não tente me enganar, sei que você precisa vendê-lo e ninguém oferece mais do que eu... Não esqueça o combinado: - Se até o final da noite se o livro não escolher o seu dono ele fica comigo, afinal, quem descobriu o livro com aquele frei?...

Santeiro:
- Mas quem foi o escolhido?...

Nicodemos:
- Vocês não sabem o que dizem. Esse livro não vai cair nestas mãos sujas...

Desidério fica possesso e avança em direção de Nicodemos.
Santeiro levanta-se da mesa e barra o caminho de Desidério.

Nicodemos:
- Santeiro você não tinha ainda me falado sobre esse frei Ozéas e suas histórias escritas nesse livro!... Eu já desconfiava que houvesse alguma bruxaria nas páginas deste alfarrábio...

Tudo volta ao normal e Santeiro senta-se novamente. Desidério toma a palavra de Santeiro e, com intimidade de quem conhece a história, passa a falar sobre o tal frei. Conforme ele vai narrando, os outros personagens da peça vão se aproximando da mesa.

Desidério:
- Pois então, eu é que vou contar para vocês o que eu sei dessa história: - Conheci frei Ozéas, faz muito tempo, nessa época, setenta e cinco anos atrás ele estava muito doente em um hospital. Fui seu vizinho de quarto. Foi ele quem me chamou uma noite antes de ter alta e me deu esse presente. Nunca mais o vi. Antes de me entregar esse livro ele me contou um pouco de sua vida... - Vocês querem ouvir? ...

Ésquilo, subindo no palco:
- Ozéas era um sofredor, trazia o seu coração repleto de culpas e pecados. Desde então, noite e dia, a sua única preocupação era expurgar a alma das passadas conspurcações. Tinha na fé a força do arrependimento que se converteu em loucura, converteu-se numa neurose que o arrastava de joelhos, com o rosto na terra, a todos os delírios da fé, a todos os heroísmos da abnegação.

Ângelo se aproxima de Santeiro. Santeiro, levanta-se e olha para Ésquilo e Desidério, com olhar de reprovação e com as mãos para o alto diz:

Santeiro:
- Eu vou continuar com a história, se vocês dois me permitirem...


Seqüência 7 - Exterior - Amanhecer- Convento

O convento está envolto pela luz amarela do nascer do sol.

Santeiro, off:
- Frei Ozéas, 20 anos antes de ficar doente, uma vez de madrugada, saindo do seu convento para uma piedosa excursão, encontrou à porta do jardim uma pequena cesta...

Ozéas (Santeiro) abaixa-se e apodera-se da cesta, e verifica que dentro dela havia uma criança do sexo masculino. Tomou-o nos braços.

Frei Ozéas:
- Um enjeitado! Na minha porta! Uma criancinha! Como é bonito meu Deus! O que faço agora? Nossa senhora! ...Quem sabe, se esta inocente criança, será um enviado de Deus?... Um anjo na terra para nos ajudar no caminho da redenção! É isso! É isso! Não posso negar que isso já estava escrito, que já aconteceu... Essa criança veio a mim pela mão de Deus... Obrigado Senhor por ter me trazido um anjo.

E louco de contentamento, despiu do seu velho capote, envolveu nele a criança e correu à casa mais próxima...


Seqüência 8 - Exterior - Dia - Igreja

Depois, levou-a a igreja e batizou-a com o nome de Ângelo...


Seqüência 9 - Interior - Dia - Convento

Ozéas encerra o menino numa cela ignorada e sombria.
Há bem poucos dos seus confrades confiou o seu segredo
Há vida escondida no convento. O menino de Ozéas.
O Menino que brinca nos jardins do convento com o passar dos anos torna-se um belo rapaz.
Santeiro, off:
- Ângelo viveu sem nunca sair do convento e nem sequer chegar a uma janela para ver a rua. Ozéas foi o seu companheiro, e o seu guia, mestre, e pai espiritual. Só o confiava a algum dos outros religiosos ou a algum professor do seminário. O sigilo da existência e da criação de Ângelo no convento, não foi quebrado por nenhum dos frades que o conheciam.

Ângelo agora com 20 anos passeia pelo mosteiro.

Santeiro cont., off:
- Ângelo cresceu fechado na sua religiosa estufa, sem ter nem ao menos desconfiança do que se passava lá fora. Até aos vinte anos, fez todos os seus estudos... Pronto, formado, Ozéas trouxe ele para a capital, para a grande cidade de São Paulo.


Seqüência 10 - Exterior - Dia - Cidade de São Paulo

A procura, rápida e agitada pelas ruas movimentadas da cidade, de uma de suas igrejas.


Seqüência 11 - Interior - Dia - Cidade de São Paulo

No interior de uma grande e antiga igreja, em seu altar, está Ângelo, todo ricamente paramentado, caminhando em direção do púlpito, de onde faz um sermão.

Santeiro, continua off:
- O primeiro sermão de Ângelo foi um verdadeiro acontecimento, que logo se apoderou da curiosidade de toda São Paulo. Por toda a parte se falava nele, só se comentava sobre aquele pálido e meigo seminarista, que vinha da sombra silenciosa de um pobre mosteiro. Discutiam-lhe os olhos, a boca, os cabelos. Falava-se do seu ar angélico, da sua encantadora expressão de santo inspirado, e da maravilhosa doçura da sua voz.


Seqüência 12 - Interior - Dia - Teatro

De volta as mesas do Palco/Restaurante. Desidério quer pegar no misterioso livro, mas Santeiro esconde ele dentro do casaco deixando Desidério irritado novamente:

Desidério:
- Este livro é meu! Você me roubou, bem sabe disso! Ele estava comigo e desapareceu misteriosamente no hospital Quem pegou? Você!...

Santeiro:
- Este livro que acompanhou frei Ozéas durante toda a sua vida, veio parar em minhas mãos através de um mensageiro do padre Ângelo e, se realmente pertencer ao reclamante, hoje mesmo ele será devolvido.

Desidério:
— Um triunfo! Um verdadeiro triunfo! Parece-me que esse Ângelo, em muito pouco tempo, vai tomar o lugar de muita gente...

Ângelo olha para Desidério.

Desidério:
- Não estou falando de você! Estou falando do tal discípulo do velho Ozéas, que se tornou extremamente popular e ficou até amigo de Santeiro! Não é essa a história que está escrita no livro?

Santeiro:
— Neste livro estão escritas todas as histórias e também nenhuma história, por que todas as suas páginas estão em branco. O seu texto só é apresentado em circunstâncias muito especiais. Nunca estive com esse santo homem! Não era meu amigo. Só estava presente quando ele nos presenteou, pela primeira vez, com o seu sermão. Neste dia toda cidade de São Paulo queria entrar na Igreja. Ah! o sermão foi com efeito uma obra-prima no seu gênero! Vi desfazerem-se em pranto criaturas, a quem eu supunha fosse impossível arrancar uma lágrima!

Nicodemos:
— Pois se até Desidério ainda chora!... Isso é que é verdadeiramente extraordinário!...

Desidério:
— Eu me emociono, é uma história muito triste!...Esse padre Ângelo tinha talento...

Nicodemos:
— Ah! Não há dúvida que o talento sabe fazer todos os milagres!...

Ésquilo:
— Não! Não! Perdão! Não foram os seus talentos que fizeram o milagre, meus amigos! Não! Não foi o talento, nem tampouco a ilustração teológica do jovem seminarista...

Desidério:
— Então o que é que foi?...

Ésquilo:
— Uma coisa muito simples, uma coisa extremamente simples...

Todos:
— Que foi? — Que foi? — O que foi então?...

Ésquilo:
— A sinceridade.

Todos, em coro:
— A sinceridade?Oh!!!!

Ésquilo:
— Sim, meus caros amigos. A verdadeira convicção nas suas crenças... Foi só daí que lhe veio àquela poderosa e dominadora eloqüência. Ângelo falou mais com o coração do que com a cabeça... Assim também é com o ator no teatro...

Nicodemos, voltando o rosto:
— Não sou dessa opinião!

Santeiro:
— Era muito natural, muitíssimo natural que, em meio de uma sociedade devassa, aquele verbo sincero, ingênuo, convicto e apaixonado, a todos fulminasse, como se fora ele raios de luz vingadora enviada diretamente por Deus! O singularíssimo caso de um rapaz de vinte anos perfeitamente imaculado e puro!
Nicodemos:
— Mas, Santeiro, ele será, com efeito, tão puro como se diz por aí?... Não creio!

Santeiro:
— O que há de mais puro!

Nicodemos:
— Um homem virgem em pleno século vinte e um!.... eu não acredito!
Madalena:
— Nem eu! O Santeiro exagera com certeza...

Santeiro:
— Não exagero e digo mais, que ele nenhum mérito revela com semelhante raridade, porque tal pureza não é obra sua, mas sim de frei Ozéas.

Nicodemos:
— Mas, afinal, qual dessas mil e uma lendas, que correm por aí a respeito de Ângelo, é a verdadeira?...

Santeiro:
— Quais sejam as mil e uma, não sei, mas a verdadeira é esta que vou contar...

Nicodemos:
— Pois venha a lenda!

Desidério:
— Pois venha a verdade!

Ésquilo:
- Atenção! Atenção! Todos! Você também!... Meus amigos, todos sabemos por que estamos aqui, acho que todos já se informaram dos seus personagens. Vocês já estão prontos para grande aventura da criação? Se existir alguém aqui no palco que queira desistir do espetáculo, ainda há tempo para sair fora, depois não será possível, não haverá espaço, não restará mais tempo... Estão prontos? Vamos ao espetáculo!

Entram no palco/restaurante todos os atores, bailarinas, figurantes exóticos, técnicos, etc. (O Rei da Vela) Muitos são os personagens que ensaiam; As bailarinas ensaiam suas danças; O pianista a sua banda. O cantor, a mando de Ésquilo, torna-se agora um padre que pede silêncio a todos e faz um sermão para as bailarinas seminuas que antes dançavam no palco.

Ângelo:
- Perdidas mulheres e homens perdidos, imitadores dos Anjos no paraíso. Por que padecer neste mundo tão semelhante ao que nós padecemos em toda a nossa paixão? Por quê? O confronto da paixão entre vós, parte será de noite, sem dormir, parte será de dia, sem descansar... Assim, um anjo despido, e vós despidos; Um anjo sem comer, e vós famintos. Um anjo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo...

A música harmônica que o quarteto tocava, transforma-se em uma composição concreta repleta de climas que passam a nortear o ensaio. Todos que ali estavam começam a fazer alguma encenação e a participar do espetáculo. Santeiro com o espírito alegre de que era dotado e com a sua pitoresca e original maneira de contar as coisas, chama então o ator que está saindo do palco e pede para ele se aproximar da mesa onde estão alguns personagens.

Santeiro:
— Ângelo, é uma coincidência a sua presença neste recinto. Você é um grande ator, o sermão do padre é perfeito, frei Ozéas ficará orgulhoso quando te encontrar...

Ângelo:
- Não conheço ainda toda a história!... Quem é esse frei Ozéas? Quando vou encontrá-lo?

Ésquilo:
- Já o encontrou!

Desidério:
Frei Ozéas, queria fazer de você um padre perfeito.... Queria fazer um grande coração, muito forte e muito amoroso; amoroso para os homens, forte para o mundo. Queria que o seu discípulo amado fosse um anjo em uma torre de cristal, invulnerável e incorruptível, mas tão alta e tão sólida que ligasse a terra ao céu e o homem ao seu Criador!

Santeiro:
- Ora, obrigado Desidério! Aí tem meus adoráveis amigos tudo o que sabemos de fonte pura a respeito do singular moço.

Madalena:
— E ele, nunca então havia saído à rua?...

Santeiro:
— Nunca! Fez todos os seus estudos e recebeu as ordens sem arredar pé do convento, ao qual o seminário é anexo. Seus dias, desde a mais tenra idade, foram todos, dedicados de corpo e alma aos livros santos e aos mistérios da igreja.
Madalena:
— Então é um ente perfeitamente puro?

Santeiro:
— Puro como um anjo. É assim que está escrito.

Desidério:
— É extraordinário!

Nicodemos:
— É inacreditável!

Madalena:
— Um homem puro em São Paulo! A dois passos de nós!...

Santeiro:
— Um homem puríssimo, virginal! Imaculado! Um homem completamente inocente, sem a menor idéia do que seja a sociedade, as paixões mundanas, o sexo, nem...

Ângelo:
— Nem sexo?!

Nicodemos:
— Nem nada! Nada! Nada! Nada, minhas adoráveis pecadoras!

Desidério:
— Mas para se tornar padre estudava e lia muito, não é verdade?

Nicodemos:
— Sim, mas só coisa sagradas... Biografias de santos, anedotas religiosas e dissertações espirituais...

Desidério:
— Ah! Não há dúvida, porém, de que além do talento oratório, ele é uma capacidade em matéria de religião...

Nicodemos:
— Qual! Acho que aquele pobre moço era um louco, talvez mais uma inteligência aproveitável que se perdia, é mais um infeliz doente que ganhavam os hospitais!

Ângelo:
— E por quê?...

Nicodemos:
— Ora, porque toda a sua ciência, se é que ele a tem, ela baseia-se nos mais falsos princípios. A sua filosofia é bonita, não há dúvida, mas completamente inútil. Não passará nunca de um metafísico! Construiu o seu edifício intelectual sobre areia movediça; e no dia em que o primeiro sopro quente de vida real cair-lhe em cima, lá se irá por terra a igrejinha! No dia em que a natureza, indefectível nas suas leis, o chamar friamente à verdade das coisas e exigir que ele cumpra com o seu destino de homem, o seu próprio talento há de revolucionar-se com o seu sangue, e ele terá de abrir guerra aos falsos e arbitrários princípios em que o educaram. E então, o desespero e a decepção daquela pobre vítima do visionário Ozéas serão tamanhos e tão fortes, que o desgraçado talvez não tenha forças para resistir ao golpe!

Madalena:
— Pode ficar tranqüilo, meu amigo, que o inocente Ângelo não conservará por muito tempo as suas penugens de anjo! A questão foi pôr o nariz à primeira vez fora do convento, respirou este ar de São Paulo, está pronto! Está perdido!

Nicodemos:
- Um átomo desta complicada atmosfera, composta da exalação de todos os luxos e de todas as misérias, de todas as febres e de todas as paixões, é o bastante para revolucionar-lhe o espírito e corromper-lhe o corpo até a medula.

Sinésio:
- Não dou muito tempo para vermos o tal santinho de olhos bonitos entrando na vida...
Mateus:
— O que talvez não esteja longe!...

No palco, representando, ao lado de Mateus, está o diretor.

Esquilo,
- São Paulo. Inferno dos negros. Purgatório dos brancos. Paraíso das mulatas.

Ângelo, (sendo vestido de padre pelas bailarinas que cantam a sua volta):
- Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas, entre sigilo e espionagem, acontece a sacanagem nesta casa brasileira. Um grito desesperado ouve-se em redor da mesa. Lá no fundo, com certeza, está o livro, único entre todos, onde os sonhos se realizam, onde a morte é brincadeira.

Ângelo, agora ricamente paramentado, com passos lentos caminha no altar cenográfico, e, dentre uma nuvem de incenso, com os braços abertos, ergue-se no êxtase da sua oração. Ésquilo dirige a cena.

Ésquilo:
- Está belo como um jovem Deus! Assim, vendo-o em seus suntuosos damascos bordados, parece um anjo todo vestido de ouro. Você tem o rosto de marfim, de que falava na Bíblia a triste e voluptuosa filha de Jerusalém, decantando o seu amado... Ozéas! Santeiro! Venham até o palco.

Santeiro sobe no palco e torna-se Ozéas que servia de acólito ao padre Ângelo. A sua curva figura detrás daquele moço, lembrava, no trêmulo arrebatamento da contrição, o vulto de um velho rei louco, guardando com os olhos ansiosos o seu lindo príncipe desejado por todas as mulheres. E, com efeito, sobre Ângelo, de todas as bailarinas, desciam raios de tentação. Uma das bailarinas, Madalena, fitava-o como uma serpente paradisíaca. Mas, quando Ângelo erguia o olhar pela derradeira vez, procurando o céu, seus olhos de repente se fecharam fulminados, e todo o seu corpo estremeceu da cabeça aos pés. Em vez do céu, seus olhos tinham encontrado o olhar de Madalena.

Ésquilo:
- Agora, Ozéas, vendo o olhar de Ângelo para Madalena, solta um grito e correndo na sua direção, toma-o violentamente nos braços, esconde-lhe a cabeça entre as suas mãos trêmulas, tapando-lhe o rosto contra seu peito.

Ângelo fica por longo tempo a fitar, ameaçadoramente, a linda bailarina.
A cena é repetida pelos atores enquanto os outros personagens precipitaram-se para junto dos dois eletrizados de curiosidade. Todos queriam saber no mesmo instante o que havia acontecido. Mas os sinos começaram a repicar alegremente; os músicos tocam uma música profana; Ângelo, sem levantar a cabeça do colo de seu pai, afasta-se do palco e sai, vagarosamente, arrastando os pés como um cego.

Ésquilo:
- Um olhar de uma mulher pode modificar o mundo!

Ângelo corre para a coxia do palco. Assim que se achou a sós com Ozéas abriu a soluçar numa convulsa explosão de todo o seu ser.

Ozéas:
- O que foi Ângelo... O que está acontecendo?

Ângelo:
- Não posso determinar o que se passa em minha alma. Uma agonia estranha e dolorosa, que a revoluciona sem dizer por quê; um íntimo martírio, feito de vagas apreensões, que a atordoa de terror por iminentes e desconhecidos perigos.

Passa um tempo. Ozéas do seu lado meditava sem erguer a cabeça, rezava o terço recolhido em profunda preocupação.

Ozéas:
— Então, meu filho, continua a tua perturbação?...

Ângelo não deu resposta.

Ozéas:
— Vamos! Fala!

Ângelo:
— Sim, meu pai. E peço-lhe que me deixe a sós; preciso concentrar-me, até voltar à minha primitiva tranqüilidade... Deixe-me conversar com a minha pobre alma!...

O velho insistiu, segurando-lhe as mãos e fitando-o, como se procurasse arrancar-lhe pelos olhos a confissão da revolta que lhe roia à alma.

Ozéas:
— Mas como explicar semelhante perturbação?... Como explicar semelhante anomalia?!...

Ângelo:
— Não sei... Não sei... Deixe-me ficar só, meu pai!

Ozéas:
— Mas tu nunca faltaste a nenhum dos teus deveres... Tu nunca pecaste, por palavras, nem por obras, nem por pensamentos... Tu, que foste por bem dizer educado pela mão de Deus, por que tremes agora e por que me olhas desse modo, Ângelo?!

Ângelo:
— Não sei, não sei meu pai!

Ângelo, como se receasse a traição dos próprios olhos, escondeu o rosto nas mãos. Ozéas chegou-se mais para ele e disse, depois de contemplá-lo em silêncio por algum tempo:

Ozéas:
— Acaso estará o demônio a cercar-te, cobiçoso de tua alma tão branca e tenra?... Ou a tua perturbação será causada pelo eco profano dessa cidade profana?

Ângelo ergueu-se e descobriu o rosto. A sua fisionomia estava transformada.

Ângelo:
— Não sei! Não posso explicar o que sinto e o efeito que me produz o confuso rumor que ouço em torno de mim!... Não posso determinar qual é o fato que me perturba; qual é o ponto de onde me vem esta agonia, mas sinto-me espavorido e frio, como se estivesse abandonado, tal qual Prometeu acorrentado sobre o píncaro de um rochedo nu, em torno do qual se agitassem todos os mares do globo. Sinto em derredor do meu cérebro, o terrível vozear desse interminável oceano...

Ozéas:
— Tens medo?! Entretanto, hoje não devias ouvir; nem ver, nem sentir outras vozes que não fossem as vozes do céu! Tua alma devia estar toda voltada para ele e só a ele refletindo, como um grande lago quieto, cristalino e límpido, cuja superfície não toldasse sequer a asa de uma abelha...

Ângelo:
— Bem sei, bem sei meu pai! Outras idéias distraíam minha alma, outro sangue me pulsava em todo o corpo até ter dentro do peito outro coração que não o meu, dentro do cérebro pensamentos que me não pertenciam!

Ozéas, ouvindo estas palavras, teve um forte sobressalto de terror, e apossou-se de Ângelo como se o quisesse resguardar do mundo inteiro.

Ozéas:
—É preciso que fujas o quanto antes deste covil de tentações diabólicas! É preciso deixar São Paulo, imediatamente, já! É preciso que te refugies na paróquia mais humilde, mais pobre, mais miserável, e onde só possas encontrar sacrifícios e dores a sofrer! E se aí mesmo, arredado de tudo que for brilhante e fascinador... Isolado das perdições mundanas... Aproximarem-se outra vez de ti os demônios e fizerem com que o sangue te volva ao cérebro ameaçando estrangular os teus votos sagrados. Então agarra aquele arame frio, fino, eriçado de pontas, que se traz sobre a pele para mortificação e penitência e fustiga e martiriza com ele a tua carne, até que a faças calar para sempre! E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher que te leve a sonhar estranhas venturas... Dilacera as tuas carnes com as unhas, até sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga, à força de penitência, toda a animalidade que em ti exista!

Ângelo soltou um grito e caiu de joelhos, balbuciando uma prece por entre os seus soluços.

Ângelo:
— Mas que estranhas venturas serão essas que as mulheres nos levam a sonhar?... Então a mulher não é também uma criatura de Deus?... Um ente, tão abençoado e protegido por ele, que até foi por ele escolhido para servir de mãe a seu filho Jesus?... Pois tão grande honra se concederia a um ente desprezível, posto neste mundo só para tentar os justos e desviá-los do caminho da virtude?... Se a mulher é má, por que existe?... Se existe, por que Deus a fez má e perigosa?... Por que me é vedado amá-la tanto quanto me cumpre amar aos homens. Por que não devo amar as mulheres?... Não serão minhas irmãs?... Não seremos todos filhos do mesmo pai?...

Ângelo fechou os olhos.

Ângelo, off:
... Se a mulher é produto dos infernos todos temos em nós um pouco de Deus e um pouco do demônio, porque todo o homem nasce, tanto do homem como da mulher e, todavia o senhor me ensinou a odiar a mulher... Por quê?

Ângelo:
- Se o sexo é uma imundície condenada por Deus, por que Deus então fez as suas criaturas aos pares, e por que fez o sexo?... Por que os homens não continuam a nascer como Adão e Eva?...

Ozéas:
"Por castigo", diz a Escritura Sagrada...

Ângelo:
- Logo, a procriação não é um bem, é um mal; logo, o mundo inteiro é um purgatório, e a vida um tormento!...

Ozéas:
- Afasta-se Satanás!...

Ângelo:
- Qual é o meu crime?! Por que todos nesta vida têm uma companheira e eu não a posso ter?! Por que hei de ser só, eternamente só, quando a natureza deu um par a cada uma das suas criaturas?!...

Ozéas:
— Não! Não estará só! Nunca! És um padre e sua esposa sois vós, Senhora amorosíssima, lírio celeste, perfeição dos céus! Perdoai se por um instante de delírio ele se esqueceu do seu amor!

Ângelo corre à janela cenográfica e bramiu, ameaçando a natureza lá fora, com a mão fechada:

Ângelo:
— Bem te compreendo, natureza pérfida e sedutora! Bem compreendo os teus embustes! És pior ainda que a tua rival, a civilização! Mas em vão te enfeitas com as tuas galas e com os teus sorrisos de amor! Não me seduzirás, pântano de lama coberto de flores! Não me corromperás, porque tenho na alma bastante energia para governar os meus sentidos, e tenho o meu coração cercado por uma muralha de fé! Atira-me aos pés o ouro do teu sol, atira-me o perfume das tuas flores, o mel dos teus frutos, o mistério dos teus crepúsculos, a música das tuas florestas, os deslumbramentos das tuas auroras! Tudo será baldado! Hei de resistir a todas as tuas provocações! Venham, filhos do inferno! Podem vir todos, que me encontrarão armado e de pé firme!

Ozéas lhe bateu no ombro. Ângelo voltou para ele os olhos desvairados.

Ozéas:
— Amanhã, partiremos de madrugada para Minas.

Ângelo:
— Estou às suas ordens, meu pai.



SEGUNDO MOVIMENTO



Seqüência 13 - Interior - Noite - Teatro

Madalena está no camarim.
Ela pensa no ator Ângelo em meio dos esplendores do palco, cercado de ávidos olhares, surgindo, dentre uma nuvem de incenso. Formoso, de braços abertos, com os olhos virginais voltados para o céu. Via-o trêmulo sorrir da sua boca de anjo, via-o melancólico balancear dos seus negros cabelos.

Santeiro, off:
- Madalena estava apaixonada, tinha-o todo inteiro e todo vivo, pela primeira vez enamorada; tinha-o ali, defronte dela, dentro dela; tinha-o com aqueles lábios tão divinos e tão puros, com aqueles gestos tranqüilos, com aquela voz embriagadora.

Madalena espreguiçou-se com um profundo suspiro, de olhos fechados e lábios entreabertos, dilatando o pescoço, como se procurasse alcançar com a boca a sombra de outra boca fugitiva. Madalena deixa-se cair sobre a almofada do divã, suspirando de novo, inconsolável na sua deliciosa mágoa de amor. Daí a instantes agitou-se o reposteiro de uma das portas e um negro, Simão, entrou no camarim, com os braços cruzados e os olhos baixos.

Madalena:
— Que é Simão?...

Simão:
- É o Ésquilo...

Madalena:
- Sim, ele pode entrar... E mais ninguém ouviu?

O negro retirou-se. Esquilo entrou pouco depois, risonho e prazenteiro como sempre.

Ésquilo:
— Então?... O mal tem progredido?

Ela respondeu com um suspiro, e ofereceu-lhe um lugar a seu lado no divã. Esquilo assentou-se e deu um estalo com a língua.

Esquilo:
— Não estou nada contente com este seu novo amor... Tenho ciúmes! Mesmo sabendo que esse novato, como homem, é um caso perdido... Você não vai poder contar com ele para nada. E receio que nesta nova circunstância, ele assumindo esta personagem e você misturando as coisas entre palco e realidade, tudo isso pode trazer perigosas conseqüências para o espetáculo... É bom ter cuidado.

Madalena:
— Mas o que hei de fazer, meu amigo? Estou encantada...

Esquilo:
- O que há de fazer?... Ora essa! Nada mais simples: evitar semelhante preocupação!...

Madalena:
— É impossível!

Esquilo:
— Viaje! E me leve com você. Ou então convide o seu empresário Desidério, com todo o seu dinheiro, ou quem sabe o alegre músico e poeta Mateus...

Madalena:
— Não me fale no Mateus!

Esquilo:
— Aqui é que não convém ficar, deixando-se consumir por um desejo, que naturalmente nunca será satisfeito... Pelos seus olhos, percebe-se que já hoje chorou! É muito bonito, não há dúvida!

Madalena:
— Não brigue comigo, Esquilo!

Esquilo:
— Brigo com razão! Sempre lhe perdoei as fantasias, mas...

Madalena:
— Sabe se é verdade o que disseram?

Esquilo:
— A respeito de quê?

Madalena:
— A respeito dele. Ele vai voltar para Minas?

Esquilo:
— Sim.

Madalena:
— E o espetáculo?

Esquilo:
— Não sei. Vamos arrumar outro ator.

Madalena:
— Minas! Irei também!

Esquilo:
— Está sonhando, Madalena! Não irá, pois que não consinto!

Madalena:
— Há de consentir e até há de acompanhar-me...

Esquilo:
— Eu? Qual!

Madalena:
— Nesse caso irei só!

Simão entrou no camarim novamente.

Madalena:
— Simão, olha no corredor e veja se Desidério já está visível?Vai ver, e, se estiver, peça-lhe o favor de vir cá.

Quando daí a pouco Desidério, com a sua desafinada figura, entrou no camarim de Madalena, esta, antes que ele tivesse tempo de apresentar-lhe uma galanteadora frase de saudação, e antes que ele correspondesse ao cumprimento do Esquilo, disse-lhe:

Madalena:
—Desidério, de hoje até depois de amanhã o mais tardar, preciso de uma casa de campo nas imediações de Minas. É caso urgente! Peça ao Simão para encontrá-la... (Desidério tenta falar)... Não me faça esta pergunta que eu não te responderei!

Desidério contentou-se de fazer uma cara de assombrado. Esquilo sorriu. Desidério sai. Madalena tirou a blusa, mostrou um pouco do seu belo corpo de bailarina e entrou atras do biombo, sem nenhum constrangimento. Passa um tempo. Madalena sai do camarim e caminha em direção do palco.


Seqüência 14 - Interior - Dia - Teatro

Na mesa do restaurante, envolvido por jovens, Santeiro olha para o rosto assustado e suado de Madalena que se aproxima.

Santeiro:
— Sente alguma coisa, minha amiga?...

Madalena:
— Não, Santeiro, estava sonhando... Diga-me: sabe se Ângelo partiu, como estava previsto?

Santeiro:
— Ainda não. Foi detido por uma febre.

Madalena:
— E quando parte?

Santeiro:
- Não sei menina. Logo que ele possa fazer a viagem.

Madalena:
- O que esta acontecendo aqui Santeiro... Tudo está confuso... Não consigo separar o sonho da realidade.

Santeiro:
— É o livro, ele está mexendo com a sua alma... E com a cabeça das pessoas.

Santeiro, vendo que Desidério se aproximava:
— Aí vem o seu empresário. Vou tomar um café...

Santeiro sai. Chega Desidério.

Desidério:
— Pensei que não nos deixassem um momento em liberdade!...

Madalena:
— Ah! Você estava aí, Desidério?

Desidério:
— Minha presença a incomoda, querida?...

Segredou ele, chegando-se mais. Madalena se afasta.

Madalena:
— Está no seu direito...



Sequência 15 - Interior - Noite - Teatro

Madalena entra no camarim. Na suas costas está Desidério.

Desidério:
— Não me fale em direito, minha flor. Não é por um direito que eu desejo privá-la dos seus momentos de solidão...

Madalena:
— Então por que mais é?...

Desidério:
— Desejava que fosse por seu gosto, pelo prazer...

Madalena:
— Isso não é coisa que dependa só da vontade... Não se pode queixar, meu amigo, creio que, depois que estamos juntos, ainda não deixei uma só vez transparecer má vontade em suportar a sua companhia...

Desidério se afasta com triste ar de ressentimento - Os dois já estão no palco novamente representando os seus personagens.

Desidério:
— Suportar!... Suportar!... Eis um termo que, só por si, patenteia toda a indiferença que a menina tem por minha pessoa...

Madalena:
— Ah! Você hoje está num dos seus maus dias!... Desculpe se o ofendi...

Desidério retorna furioso:
— Vamos, diga às minhas ordens!... Bem sabe que estou às suas ordens!...

Madalena perde a paciência;
— Oh! Basta! ... Que impertinência! Está sempre a queixar-se...

Desidério:
— Queixo-me com razão! Bem sabe que a minha ligação com você não foi um simples impulso dos sentidos!...

Madalena:
— E que tenho eu com isso?... Que tenho eu com os motivos que o levaram a ligar-se comigo?

Desidério mais calmo:
— Você bem sabe que, para ficar ao seu lado, tive de sacrificar minha família, meus filhos, minha fortuna, meus negócios, tudo que de melhor e mais sagrado possuía no mundo!

Madalena:
- Você quer é me deixar louca?Ou quer que eu tenha pena de você?

Desidério:
— Tem razão, meu amor... Tem toda a razão. Mas tudo isto é porque a amo, muito, muito, loucamente!

Quis tomar-lhe as mãos; ela não deixou e respondeu virando-lhe as costas:

Madalena:
— Ama-me muito! Isso não diminui a impertinência de suas palavras!

Desidério:
— Perdoe-me, Madalena...

Madalena:
— Se lhe não convenho, se lhe sou perniciosa, afaste-se de mim! Ninguém o obriga a ficar ao meu lado!

E arredou-se dele saindo do camarim.


Seqüência 16 - Interior - Dia - Teatro

Desidério acompanhando Madalena sai atrás dela no palco e a segura quando ela tropeça.

Madalena:
—Mas, que diabo Desidério! Eu cumpro lealmente com o que prometi, e se não estivesse disposta a fazê-lo, lhe diria com franqueza, porque afinal sou livre! Fiz alguns sacrifícios, não foi por mim, foi pela sua própria pessoa; e, se não tinha elementos para a empresa, por que a empreendeu?

Desidério:
— Porque a amava!

Madalena:
— E amava-me, porque sou bela, sou moça e estou na moda! (virando-se para os atores que estão em cena, pergunta) - Onde Ângelo está?

Olhando para a cara triste de Desidério solta uma risada de escárnio, saindo do palco para o camarim... Desidério vai atrás.

Desidério:
- Ora menina! Você há de convir que este corte no nosso diálogo não me ajuda em nada, nem ao espetáculo... Você não me deixa construir o meu personagem! Perco sempre toda sua originalidade!

Madalena:
— E é você quem me diz isto?!...

Desidério:
— No entanto, você sabe perfeitamente que eu a tudo me resignaria, se a senhora fosse para mim um pouco mais amorosa... Eu tudo perdoaria, se...

Madalena:
— Perdoaria?... Mas eu é que não quero o seu perdão para coisa alguma... Não me sinto absolutamente culpada.

Desidério:
— Pois devia sentir-se! Tenho o direito de ser tratado melhor nesta casa!

Madalena:
— Minhas palavras são amargas?... É você quem as provoca...

Desidério:
— Tudo isso, prova que você nunca sentiu por mim o menor vislumbre de amor...
Madalena;
— Ora, Desidério! Não me faça rir! Mas por que razão queria que eu o amasse?...

Desidério:
— Quando por mais não fosse, por gratidão...

Madalena:
— Nunca lhe pedi favores!

Desidério:
— Mas aceitou-os...

Madalena:
— Basta! Não tenho coragem de mandá-lo sair, mas tenho vontade de nunca mais o receber!

Um raio não fulminaria tanto o Desidério como estas palavras. Madalena muda novamente de roupa no camarim. Desidério está parado na porta.

Desidério:
— Você dessa forma obriga-me a não voltar...

Ela, tirando a roupa e procurando uma nova no biombo, sacudiu os ombros. Desidério entra e senta-se na poltrona.

Desidério:
- E, para evitar que isso aconteça... Só vejo um meio... É não sair mais daqui...

Aparece Simão, que exclama da porta, fazendo uma continência:

Simão:
— Mateus está chegando!

Madalena:
— Mateus?...

Desidério:
— Mateus aqui!... Eis aí um com quem você não usaria da franqueza que usa comigo...

Madalena:
— Por que não?

Desidério:
— Porque é moço, é belo e tem talento...

Madalena, gritando para Simão:
— Simão! Diga que não estou...

Desidério:
— Não lhe convém recebê-lo em minha presença?

Madalena:
— Ah! Sim...

Disse ela. E voltou-se de novo para o criado:

Madalena:
— Simão! Fazei-o entrar.

O criado sai do camarim em dúvida: o que fazer?

Desidério:
— Mas eu não vou sair, eu quero ficar ali, por detrás do biombo...

Madalena:
— Com uma condição; haja o que houver você não vai brigar com ele...

Desidério:
— Prometo, mas você não lhe dirá que o ama...

Madalena:
— Ah! Não! Isso eu não direi com certeza...

Desidério:
— Pois então juro que não brigarei.

Madalena:
— Pode esconder-se.

Entra o músico e pianista Mateus cantarolando...
Vinha vestido a rigor para o espetáculo, de casaca com extrema elegância.

"Ora, graças a Cupido,
Neste império da beleza
Enfim me foi permitido
Entrar, sem maior despesa!..."

"Dizem que a cidade inteira,
Após a célebre cena do sermão
Anda toda em devoção...

E, chegando-se mais para Madalena, segredou intencionalmente:

E que certa moça galante,
Ouvindo o sermão, fitou
Por tal modo o celebrante,
Que o celebrante corou!

Madalena:
- Para com isso Mateus, quer me deixar irritado com você?

Mateus:
— Uma sátira inocente...

Madalena:
— Oh! Muito inocente!...

Mateus:
— Tão inocente como Ângelo?...

Madalena:
— Ah! Já sabes do meu amor?

Mateus:
— Claro! Toco para ele cantar, ele me conta tudo o que faz, sabia que ele vai partir?

Madalena:
— Isso é uma piadinha de mau gosto!

Mateus:
— Por quê? Todos aqui contam o caso de que a linda Madalena, também esteja com o peito ferido pelo casto pregador?...

Madalena:
— Como "também"?... Há então outras?

Mateus:
"Foi o caso que o sujeito,
Tendo as damas convertido,
Tanto as fez bater no peito,
Que o peito lhes pôs ferido!..."

Madalena:
— Fale antes em prosa, Mateus! Os seus versos me fatigam muito.

Mateus:
— Pois seja!

Exclamou ele, encaminhando-se para Madalena.

Mateus:
- Eu te amo, Madalena, flor insensível! Flor dos meus sonhos! Flor das minhas desventuras! E quero saber quando será o dia venturoso em que eu receba de tua formosa boquinha...

Madalena:
— Um sorriso!...

Mateus:
— Não! Uma palavra de animação...

Madalena:
— Bravo!

Mateus:
— Bravo?!

Madalena:
— Não conheço melhor palavra de animação...

Mateus:
— Não zombe de mim, meu amor!...

Madalena:
— Zombar de Mateus!... Se o conseguisse, vingaria meia humanidade, tão ferozmente satirizada pelos seus versos maus e pelos seus maus versos!

Mateus:
— Conclui-se destes trocadilhos, que sairei daqui sem ouvir uma palavra de esperança...

Madalena:
— Está falando sério, meu pobre amigo?

Mateus:
— Juro-lhe que sim, minha linda menina. Juro-lhe pelas musas, que a minha maior felicidade seria merecer-lhe uma palavra de amor...

Madalena:
— E que razão me havia de amá-lo?

Mateus:
— Ora essa! Por que razão é que os outros se amam?...

Madalena:
— Eu, caro pianista, só amo quando me fascina qualquer coisa extraordinária, muito extraordinária! Seja o que for, mas que seja — extraordinária!

Mateus:
— Paciência!... Todavia, quero crer que Desidério nada tem em si de extraordinário, e, no entanto...

Madalena:
— É meu amante... Ah! O caso é outro! O Desidério é muito rico... Pode dar-se a esse luxo!... Ama-me, daí, porém a ser amado — vai um abismo!

Mateus:
— Se o Desidério a ouvisse?...

Madalena, sacudindo os ombros:
— Ele sabe disso tão bem como eu; a ninguém engano!...

Mateus:
— Nem ama, tampouco!

Madalena:
— Quem sabe lá?... Talvez...

Mateus:
— Madalena, a grande bailarina! Qual! Duvido! Você não é mulher que pode amar! Não tem coração!...

Madalena:
— Então que sou eu?...

Mateus:
— É um lindo cofre de marfim rosado, com o competente orifício para receber o ouro dos otários.

Madalena:
— E era para dizer-me semelhante galanteria, que o músico, poeta, pianista, fazia empenho de vir ao meu camarim?

Mateus:
— Não! Era na esperança de ser correspondido no meu amor...

Madalena:
— O poeta às vezes não me parece um homem de espírito...

Mateus:
— Em questões de amor todos os homens são igualmente estúpidos!...

Madalena:
— Mas, valha-me Deus, Mateus! Por que razão havia eu de amá-lo?...
Você é um bonito rapaz, não há dúvida; está na flor da idade, não lhe falta talento, mas... É só isso!...

Mateus:
— E acha pouco?... Moço, bonito... Tenho os encantos das três graças: mocidade, amor e beleza, e ainda me sobra um!

Madalena:
— Não! Dois: o talento e a vaidade. Mas falta-lhe o principal...

Mateus:
— O que não falta ao Desidério... Dinheiro?...

Madalena:
— Qual! O dinheiro não se conta. Se gasta!

Mateus:
— Então que me falta? Juízo, talvez... Então não sei o que me falta!...

Desidério, saindo do seu esconderijo:
— Sei-o eu!

... E Desidério surgiu defronte de Mateus fulo e trêmulo de raiva.

Mateus:
- Estava escondido, senhor Desidério?... Divertia-se a escutar-nos... Magnífico!

E voltando-se para Madalena:

Mateus:
— Obrigado, minha querida, por me fazer passar esse papel...

Desidério sem poder domar a cólera que o sufocava, prosseguiu no tom em que começou:

Desidério:
— A qualidade que lhe falta, senhor pianista, não é dinheiro, nem juízo; é prudência! É grande temeridade dizer mal de quem quer que seja à própria amante dessa pessoa!

Mateus:
— Não é só temeridade... É insolência. Estou pronto para te quebrar a cara!

Respondeu Mateus, levantando a mão fechada e empinando a cabeça:

Madalena, correndo para junto de Desidério.
— Lembre-se do que me prometeu!...

Desidério:
— Só não brigarei se você não me fechar a sua porta.

Madalena:
— Não fecharei Desidério!

Desidério:
— Pois então não brigo com esse cachorro, Madalena!

Mateus, que durante este curto diálogo media os dois com ar de desprezo, entortando a cabeça e sacudindo a perna, gritou para o Desidério.

Mateus:
— Olha, senhor pregador de prudência, é preciso consultar a sua amante, antes de pôr a limpo as injúrias que lhe fazem?... Creio ter dito bem alto que vou lhe quebrar a cara!

Desidério:
— Não vou brigar com você...

Mateus:
—Já desconfiava seu covarde!...

Desidério:
— Cachorro insolente!

Bradou Desidério, avançando de punho fechado sobre Mateus. Começava a briga. Mateus leva um murro de Desidério, cai no chão e sai derrotado do camarim.


Seqüência 17 - Interior - Noite - Teatro

No palco, show das bailarinas com Ângelo. Chega uma equipe de televisão. Mateus, saindo do camarim volta ao palco e conversa com Ésquilo.

Mateus:
- Ésquilo, infelizmente você vai ter de arrumar outro pianista, estou saindo do espetáculo, acabei de brigar com o corno do Desidério.

Ésquilo nada fala. Mateus vai então para o piano e dedilha uma canção. Santeiro está sentado na mesa, chega nervoso Desidério. Pouco depois chega lívida e transtornada, Madalena. Nicodemos aproxima-se e senta-se ao lado de Santeiro.

Nicodemos:
- Se tudo continuar assim, prisões, brigas, desentendimentos, não teremos mais o espetáculo...

Desidério, sarcástico:
- E vocês estarão todos na rua... Mas como vocês sabem, tem uma pessoa aqui que não está disposta a cooperar, se ele ficar...

Mateus:
- Eu?... Eu não farei falta!

Pára de tocar a canção no piano e olhando para a mesa onde todos estão sentados, faz um gesto grosseiro para Desidério e sai do teatro para rua.



Seqüência 18 - Exterior - Noite - Rua da cidade.

Mateus chegou à rua, lançou para o teatro um olhar de indiferença, e disse, jogando a casaca sobre os ombros:

Mateus:
— Ora! Não perdi grande coisa! Madalena e Desidério que vão para o diabo!

Desidério então reaparece, saindo na rua atrás de Mateus e quando o vê, ele grita:

Desidério:
— Ei! Pianista bêbado, cachorro sem dono! Se não és um covarde, espera! Vou lhe quebrar a cara mais uma vez.

Mateus:
— Que queres de mim, seu empresário de merda, seu babaca burguês?...

Desidério:
— Castigar-te, miserável!

Mateus:
— Ah! Chegou-te afinal a indignação de ser corno?... Ainda bem! Vá lá! Antes tarde do que nunca!... Já fizeste a tua oração?... Não te quero despachar para a eternidade com a alma suja!

Desidério:
— Defende-te, músico libertino! Porque a minha intenção não é rezar, mas te matar!

Bramiu Desidério, tirando o revólver do bolso e dando o primeiro tiro, dá o segundo e nenhum acerta em Mateus. Nesta hora todos que estavam no teatro saem à rua.

Mateus, dando um sorriso diabólico:
— Antes guardasses tanto empenho para defender tua mulher! Suas balas não têm poder contra mim. Mas as minhas, eu lhe garanto cura... Então toma!Seu doente! Experimenta do seu veneno! Morra desgraçado!...

Mateus deu um só tiro, acertando-lhe em cheio. Desidério cai. Madalena acudira com um grito e lançara-se de joelhos ao lado do amante, beijando-lhe a fronte.

Madalena:
— Meu bom amigo, perdoe-me! Perdoe-me! Eu te expus em vez de te proteger!

Desidério:
— Ai! Eu morro! Estou morrendo...

Gorgolejou, aflito, virando a cabeça de uma banda para outra. Nesse instante, do lado contrário ao que Desidério tombara, surgiam na treva da noite dois vultos negros, que lentamente se aproximavam, silenciosos e tristes como duas sombras. Vinham envoltos, da cabeça aos pés, em grandes capas negras, que lhes davam ao aspecto um tom sinistro. Um era Ozéas e o outro Ângelo.

Ozéas:
— Anda meu filho... Tem resignação e apresse os passos, que precisamos alcançar o ônibus para Minas...

Ângelo:
— Sim, meu pai...

Desidério:
— Ai! Morro sem confissão! Morro sem confissão!... Preciso de um padre...

Gemeu de novo, debatendo-se no seu estertor. Ouvindo isto, um dos dois que vinham pela rua precipitou-se sobre o moribundo, exclamando aflito:

Ozéas:
— O que é isso?... Mais um corpo coberto de sangue... A violência desta cidade chegou aos limites da loucura e da demência social...

E, arriando o capuz, para mostrar a sua veneranda cabeça dos cabelos brancos, interrogou ao grupo que o cercava:

Ozéas:
— Quem feriu este homem?

Desidério:
— Um adversário, um crápula, Mateus seu filho da puta! Vou te encontrar nem que seja no inferno!... Ai! Seu Padre... Estou morrendo!

O misterioso velho arrancou do seio um crucifixo, e levou-o com a mão trêmula à boca do agonizante.

Ozéas:
— Pede a Deus perdão das tuas culpas... Segredou ele com a voz comovida. Entrega-lhe a tua alma em plena confiança, porque eu rogarei por ela ao Senhor misericordioso!

E ouviu-se o débil sussurro de um gemido de amor esvoaçar entre os lábios do moribundo. Era o nome de Madalena, que ele chamava pela última vez.
Nicodemos, que chegava a cena do crime, abaixou-se para auscultar-lhe o coração.

Nicodemos:
— Está morto...

Ésquilo (pondo ordem na casa):
- Mateus, volte para o teatro, à polícia está chegando...

Houve uma triste concentração em que se ouviram prantos abafados.
E o negro vulto de barbas brancas pôs-se a rezar, ao lado do cadáver, com as mãos postas, o pálido rosto pendido sobre o seio. Uma velha senhora vestida de preto acendeu algumas velas em volta do morto. Entretanto, Madalena, num transporte de aflição, correra a ter com a outra sombra, que se quedava à distância, de cabeça baixa e rosto escondido sob o capuz, e exclamou entre soluços, estendendo-lhe os braços suplicantes:

Madalena:
— Meu padre! Meu padre! Sou eu a culpada de tudo isto! Sou muito, muito desgraçada! Peça perdão a Deus por mim!

O vulto se agitou e tremeu todo, através do mistério da sua negra túnica. Ouvia-se-lhe o ansioso arquejar do peito. Depois, como se precisasse de ar, arremessou para traz o capelo do hábito e recuou aterrado.

Madalena, soltando um grito:
— É Você?!

E teria caído no chão, desfalecida, se Ângelo a não amparasse nos braços. Acudiram todos e se apoderaram dela. O presbítero puxou de novo o seu capuz sobre o rosto, deu o braço à outra sombra, e começou os dois de novo a seguir o seu caminho. Ângelo, naquele momento, tinha afinal compreendido bem a verdadeira causa da sua perturbação - A sua perturbação era o amor.



TERCEIRO MOVIMENTO


Seqüência 19 - Exterior - Dia - Estrada.

Ônibus pelas estradas nas montanhas da Serra do Mar.


Sequência 20 - Exterior - Dia - Cidade do Interior de Minas.

Ônibus chega a uma pequena cidade. Ângelo, acompanhado por Ozéas, saem pela única rua da cidade. Chegam a uma casa que fica ao lado da igreja. Veio recebê-lo à porta, uma criada do padre Ozéas, uma velha chamada Salomé..
Todos se cumprimentam e entram na casa.


Seqüência 21 - Interior - Anoitecendo - Casa da Paróquia

Os dois entram na humilde casa acompanhados de Salomé. Param estatelados na sala.

Ozéas:
— Então? Então, meu filho?... Que em ti significa tamanha tristeza?...Parece-me um vil criminoso sobrecarregado de remorsos!... Vamos! Não te convém esse aspecto! Dizei-me com franqueza o que sentes...

Ângelo:
— Nada! Nada, meu pai! São íntimas tristezas sem razão de ser!... São desgosto só meus, que só eu mesmo compreendo!... A viagem fatigou-me. Preciso repousar... Bem sabe que ainda não estou bom de todo...

Ozéas:
— Pois sim, recolhe-te! Ali está o teu quarto. Já mandei pôr lá a imagem da Virgem. Eu ficarei aqui... Pode ir!

E Ângelo sai, arrastando a sua melancolia, entrando no pequeno aposento que lhe era destinado. Um triste quarto, em que a formosa imagem da Virgem se destacava. Ângelo sentou-se no catre que havia a um canto, seu desejo era poder naquele momento apertar nos braços alguém, cujo nome seus lábios não se atreviam a balbuciar. Madalena lhe aparece em seus pensamentos. Ozéas aproxima-se da porta do quarto.

Ozéas:
- Meu Deus! Meu Deus! O seu desejo é Madalena! O seu desejo é o pecado.

Ângelo andava de um lado para outro na pequena cela. Quando parava era para contemplar a imagem da virgem na parede nua. Até ali ele via o rosto do seu amor. Cai de joelhos no chão.

Ângelo, delirando, off:
- "Onde estais vós, mãe puríssima, que já não me escuta as súplicas... Se tínheis de abandonar-me e perder-me num segundo, para que então vos dei toda a minha existência de vinte anos, se não quereis vir em meu socorro, matai-me! eu aqui estou aos vossos pés, e não me levantarei dos meus joelhos senão por um ar da vossa divina graça!..."

E Ângelo, de olhos fitos na Virgem, esperava um milagre, esperava alguma coisa que lhe restituísse a sua antiga tranqüilidade de espírito. Nada! A imagem em constante transformação parecia surda ao seu desespero de salvação.

Ângelo:
- "Oh! por piedade! por piedade, minha mãe querida! envie-me do vosso peito de amor a inspiração do meu resgate!"

Silêncio.
Ângelo:
- Eu sou um infeliz! Infeliz! Não é a primeira mãe que me abandona!...

E as lágrimas de abandonado correram-lhe tristes pelo rosto. Cai ao chão. Assim dormiu. Ele foi despertado, já mais tarde, por Salomé, a velha criada que depois de bater várias vezes, resolveu a entrar no quarto.

Salomé:
— Perdão, senhor vigário. Queira desculpar interromper as suas orações, mas...

Ângelo:
— Fale! Minha irmã...

Salomé:
— É que está aí uma dama, toda vestida de negro e coberta por um longo véu, que deseja falar a vossa mercê...

Ângelo:
—- Uma mulher?... E não disse quem era?...

Salomé:
— Não quis dizer, senhor vigário.

Ângelo:
— Bem, minha filha, faça-a entrar para a capela e diga ao frei Ozéas que tenha a bondade de vir até aqui que preciso falar com ele.

A criada saiu e Ozéas apareceu pouco depois.

Ângelo:
— Há, aí, uma mulher que me procura. Devo escutá-la, meu pai?...

Ozéas:
— Que estranha pergunta, Ângelo!... Deves, decerto! É talvez alguma desgraçada que precisa de quem a conduza ao arrependimento! A consciência pura e bem apoiada na fé jamais teme as ciladas do inferno! Vai! Fala-lhe! E, se for uma pecadora, suplica a Deus, noite e dia, até conseguires o perdão para sua alma.

Ângelo afastou-se lentamente, tomando a direção da capela.


Seqüência 22 - Interior - Amanhecendo - Teatro.

Na mesa do restaurante vazio, Santeiro está acompanhado de Nicodemos.

Santeiro:
- Diabo! Mundo e carne são os ingredientes dessa trágica história... Só não sei se conseguirei chegar ao final...

Silêncio.

Nicodemos, exaltado:
- Mas não era esse o enredo do espetáculo? O que está escrito no livro? Você me disse que tinha o texto na cabeça! Portanto, vamos continuar...


Seqüência 23 - Interior - Dia - Igreja do Interior

No interior da capela está uma mulher vestida com roupas que lhe ocultam o corpo.

Santeiro off:
- Na pequena capela Ângelo aproxima-se vagarosamente da misteriosa mulher. Ela, cuja comoção se percebia, apesar do espesso véu que a ocultava da cabeça aos pés, respondeu indicando-lhe o confessionário. Estava nervosa, tremia o corpo, quando vergou os joelhos e abaixou o rosto. Começou a chorar baixinho.

Ângelo:
— Não se amedronte minha pobre irmã... (disse o presbítero com a voz amiga) Não trema desse modo. Por mais fundas que sejam as chagas do seu coração e por maior que seja o remorso da sua alma, a misericórdia divina há de chegar até lá, se o arrependimento já lhe abriu o caminho e franqueou as suas portas.

Ela ergueu-se do confessionário, aproximou-se do padre e segurou-lhe as mãos, cobrindo-as de beijos apaixonados. Ângelo quis fugir. Ela, com um gesto rápido, logo arranca o véu que lhe rebuçava as formas, e ali, no sagrado retiro daquela pobre capela de aldeia, surgiu a perigosa Madalena, mais pálida e mais sedutora do que nunca.

Ângelo:
— Ó meu Deus!... Ó meu Deus! Dá-me coragem! Dá-me coragem! Coragem!...

E recuou alguns passos, estendendo o braço, como para isolar-se daquele abismo. Nesse instante, Ozéas acabava de surgir ao fundo da capela, observando os dois, escondido por detrás de um altar. Seu peito arfava tão convulso como o peito de seu filho, mas nele o sobressalto era de outra espécie. Ângelo, todavia, parecia calmo e senhor absoluto de si mesmo. Apenas o traíam a súbita palidez das faces e um ligeiro tremor de lábios.

Ângelo:
— Creio minha irmã, que nada mais tem que fazer aqui... Queira retirar-se... Não é este o lugar que convém às suas lágrimas... Vamos... Saia! Retire-se!

Madalena:
— Mas eu sofro! Exclamou ela. Eu sofro muito! Sofro infernalmente!

Ângelo:
— Retire-se! Eu pedirei a Deus que se compadeça dos seus desvarios...

Madalena:
— Oh! Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!

Ângelo:
— Se me amas... Volta para Deus, minha desgraçada irmã, todo o teu amor de mulher!...

Dito isto, voltou-lhe as costas e afastou-se vagarosamente, como tinha vindo.

Madalena:
— Ângelo!

Exclamou ela com a voz suplicante. Ele virou-se, pôs o dedo nos lábios, impondo silêncio, e saiu. Madalena conteve-se um instante; depois precipitou-se de carreira para alcançá-lo. Mas a veneranda figura de Ozéas cortou-lhe a passagem, surgindo-lhe de improviso pela frente. Madalena estancou defronte daquelas longas barbas brancas, abaixando a cabeça e cravando os olhos no chão. Ozéas, sem dizer palavra, alongou o braço, apontando-lhe a saída.


Seqüência 24 - Exterior - Dia - Cidade do Inteior

Em frente da Igreja Madalena desesperada entra no carro e arranca com velocidade.
Santeiro, off:
- Madalena, sai e entra no carro que a esperava lá fora. Partia com o coração despedaçado. Já lhe não restava à menor esperança!...

Madalena chorando dirige o carro com velocidade pela estrada tortuosa.

Madalena:
- Ângelo me repudia! O que eu vou fazer agora? Não consigo viver sem essa esperança de tê-lo nos meus braços... Ângelo! ... Não sei como viver sem ele...


Seqüência 25 - Exterior - Anoitecendo - São Paulo

O carro de Madalena chega à cidade de São Paulo.
A chuva continua a lavar as ruas da cidade.
O sol sai forte atrás das nuvens escuras.
Na rua em frente do teatro Madalena pára o carro, sai apressada e entra desorientada porta adentro do teatro quase esbarrando em Mateus que saía pela outra porta. Mateus atravessa a rua chegando ao bar e aproxima-se de Nicodemos que está sentado sozinho na mesa.

Nicodemos:
- E ai Mateus, já faz seis meses que Ângelo foi para Minas e não conseguimos arrumar um ator substituto que tenha o seu talento... Onde está o Santeiro?

Mateus:
- Quem está de volta é Madalena... Parece-me que perdeu o juízo. Será que o Santeiro não conseguiu convencer o ator rebelde de voltar? Nicodemos, você não acha que tem alguma coisa acontecendo aqui que não dominamos...

Nicodemos:
- É o livro do frei Ozéas! Não sei onde Santeiro escondeu! Temos de pegar o livro e dar sumiço nele... Só assim acaba o feitiço. Onde o Santeiro se meteu. Só ele tem o livro, só ele sabe da história.

Santeiro caminha do outro lado da rua. Nicodemos vendo-o, atravessa, acompanhado de Mateus, o asfalto quente e passa a acompanhá-lo.

Nicodemos:
- Santeiro! Quando você chegou?

Santeiro:
- Acabei de chegar... E ai Mateus, você não foi preso?

Mateus:
- Claro que não! Você sabe, foi legítima defesa... E no mais, Desidério não morreu...
Nicodemos:
- Você conseguiu trazer o Ângelo de volta? O livro continua com você?

Santeiro:
- O livro está buscando o seu verdadeiro dono

Nicodemos:
- Santeiro, sem desculpas! Você trouxe ou não o livro?

Santeiro:
- Olha! Frei Ozéas, três meses depois de permanecer em Minas, ficou doente; esteve à morte... Ângelo está vivo, porém, muito mais magro, mais pálido, mais concentrado e mais triste, ele encarnou profundamente o seu personagem, mas diz que não sabe se irá voltar... Também essa obsessão pelo pai!

Santeiro se afasta de Nicodemos e entra no Teatro.

No exterior, em Minas, a pequena Igreja com sua casa de paróquia iluminada por uma grande lua cheia. O vento sopra forte. O céu está carregado de nuvens que passam pela luz azulada da lua criando sombras fantasmagóricas na cúpula da igreja.


Seqüência 26 - Interior - Noite - Cidade do Interior.

No interior da casa paroquial a empregada Salomé, andando de um lado para o outro, agitada, vai olhar na janela. A noite fica mais escura e a trovoada soa ao longe.

Santeiro lendo o livro:
- Uma noite, já nove horas tinham dado, e Ângelo não aparecia em casa. A velha Salomé, aflita, ia de vez em quando à janela e voltava desapontada, agitando os ombros e sacudindo a cabeça.

No interior da casa.
Salomé:
— Que faço eu?... São quase dez horas, e o senhor vigário ainda fora!...

Um relâmpago cortou-lhe a palavra.

Salomé:
— Chi! Santa Bárbara! Vamos ter tempestade! E o pobre homem por onde andará?...

Uma voz gritou-lhe lá de fora, estrangulada pela ventania.

Jerônimo:
— Ó tia Salomé!

Salomé:
— Ah! É você, Jerônimo?...

Jerônimo:
— Não pensei achá-la acordada!

Salomé:
— Pois se o senhor vigário ainda não chegou!... Entre.


Foi abrir a porta, e mestre Jerônimo, um sitiante da vizinhança, penetrou na modesta sala, trazendo seguro pelo braço um rapazola de uns doze anos, que mal se podia ter nas pernas de tão ébrio que estava.

Jerônimo:
— É que encontrei no caminho este mariola no bonito estado em que o vê, e trouxe-o porquê calculei que ele, com certeza, não se acertaria com aporta da casa!

Salomé:
— Virgem santíssima!... Não sei quando este rapaz tomará caminho! Por isso é que o maroto, mal acabou de ajudar a missa, desapareceu até agora!...

Jerônimo:
— Estava no Bar do Bruxo!

O rapaz murmura alguma coisa...

Salomé:
— Cala-te! Merecias é que te deixassem na rua como a um cão sem dono! Mal faz o vigário em conservar em casa esse demônio!...
O rapaz:
— Ora! É o próprio vigário quem todos os dias me abre o apetite!...

Salomé:
— Cala-te, demônio! Ou vou te calar pra sempre, coisa ruim?...Pobre Padre Ângelo... Só um santo pode suportar tanto desgosto!

O menino embriagado deita-se perto do fogão e dorme.

Jerônimo:
- Não há dúvida que o vigário é muito santa pessoa, mas nunca vi criatura tão triste!... Até mete pena, coitado!... Ainda o não vi rir uma só vez...

Salomé:
— Muito! Muito triste!... Às vezes, o padre Ângelo fica horas esquecidas à mesa, com os olhos pregados no teto, a cismar!... E a comida às moscas!... De outras vezes dá-lhe pra passear no jardim ou no cemitério, e então, adeus! E' preciso ir buscá-lo quase à força pra dentro de casa! Põe-se então a andar pra baixo e pra cima, que nem uma alma penada, Deus me perdoe! Pois, outro dia, acredita Jerônimo, que o senhor vigário soltou um grito e ficou a olhar-me espantado, como se eu cá fosse algum fantasma?... Cá pra mim, ninguém me tira da cabeça que ali anda tentação do cão!... Ali anda rabo de demônio!

Jerônimo:
— E por que, tia Salomé?
Salomé:
— Ora! Sei cá por quê?...

Ângelo entra na sala, com o seu passo lento e o seu ar triste e acabrunhado. Estava pálido e abatido, mas com a fisionomia serena. Fez-se silêncio. Vagarosamente atravessou a sala e foi sentar-se numa velha cadeira.

Ângelo:
— Boas-noites, tia Salomé, boas-noites, mestre Jerônimo!

Salomé:
— Deus Nosso Senhor lhe dê as mesmas, Senhor vigário!

E a boa velha, pensando no menino, que continuava a dormir a um canto, foi tratar de afastá-lo dali, para poupar a Ângelo o espetáculo daquela imoralidade. Mal, porém, lhe pôs as mãos em cima, o pequeno gritou acordando.

Menino:
— É de virar! É de virar! Hip! Hip! Hurra!

Ângelo:
— Que é isto?...

Salomé:
— Ora! Que há de ser?... Jerônimo! Carrega o pequeno lá para dentro.

Ângelo:
— Coitado!...

Salomé:
— Coitado?!

A criada abaixou a cabeça e disse, levantando-se.

Salomé:
— É mesmo um coração de anjo!...

Ângelo:
— Ouça minha boa Salomé: você às vezes finge-se má... Por que fingir-se aquilo que não é?... Por que há de dizer o que não sente?... Por que fazer-se má, quando os seus sentimentos são humanos e compassivos?
Salomé:
— Perdoe-me! Perdoe-me senhor vigário!O senhor tem toda razão... O senhor é um santo... Mas tenho que lhe dizer... Eu estava contrariada e agora estou muito zangada! Tenho que lhe ralhar!

Ângelo:
— Por que, minha boa irmã?...

Salomé:
— Ora, por quê! Porque o seu vigário de modo que vai, vai dá cabo de si!
Tem lá jeito! Levar até a estas horas com o estômago vazio, a andar por aí todo o santo dia, em risco de lhe acontecer uma doença!...

Ângelo:
— E, todavia não tenho fome...

Salomé:
— Mas há de sempre comer alguma coisa, senão é que me zango deveras!...

Ângelo:
— Tenho é muito cansaço...

Um trovão mais forte estalou no espaço, fazendo tremer as folhas da janela. Jerônimo pediu licença e saiu apressado. Salomé correu até a porta.

Salomé:
— Chiii! Que tempestade é essa que vai chegar? Olha se o senhor vigário se demora mais um pouco!... Felizmente tenho aí alecrim bento para queimar!...

Mas Ângelo já não a ouvia. Tinha os olhos cravados no teto. Salomé se aproxima e toca-lhe familiarmente no ombro.

Salomé:
— Então... Que é isso?Já caiu na cisma? Vamos! Coma alguma coisa! Vá coma uma fatia de queijo. Toma um copo de leite...

Ângelo repeliu tudo.
Interrompeu-a um novo trovão, mais forte ainda que o primeiro.

Salomé:
— Valha-me Santa Bárbara! Parece que vem hoje o mundo abaixo! Vou acender uma vela benta!

Ângelo já estava na sua pequena cela. Andava de um lado para o outro. Uma tempestade se formava. Raios cortavam o céu.

Ângelo:
- Não! A idéia daquela mulher não matará meu coração e minha alma! Preciso não pensar nela! Preciso arrancar daqui de dentro esta terrível loucura, que me absorve, gota a gota, toda a substância do meu espírito! Mas, como poderei não pensar nela, se, mal me vejo a sós, sinto-a comigo?

Ângelo, louco de desespero, deixou-se cair por terra, soluçando, estendido ao longo do chão, como um cadáver. Perdeu os sentidos. Lá fora a tempestade continuava, roncando no espaço. Ângelo passou da síncope ao sono, e começou a sonhar: Sorria e suava. Nisto, bateram lá fora três fortes pancadas com a aldrava da porta. Continuava a sonhar o pároco.

Ângelo:
— Não! Não me chames... Não te aproximes de mim, flor de perdição! Que eu morreria de pena se te fugisse, mas também morreria de remorsos, se tu ficasses...

Bateram de novo e mais forte.

Ângelo:
- Não! Não irei abrir-te a porta!

Salomé acorda e com uma vela na mão caminha até a porta.

Salomé:
— Quem é?
Voz:
— Queremos falar ao Sr. Ângelo...

Salomé:
— Agora não é possível! Voltem pela manhã!

Voz:
— É caso urgente!

Salomé, abrindo a porta:
— Mas ele está dormindo!...

Um homem, de chapéu:
— Precisamos falar-lhe no mesmo instante!

Salomé, deveras contrariada:
- Tem lá jeito!... Incomodarem o pobre homem, que ainda não há muito se recolheu tão cansado!...

Salomé bateu na porta do quarto. Ângelo acordou sobressaltado, ergueu-se e correu, a saber, quem era.

Salomé:
— Estão aí dois desalmados, que querem por força falar com o Senhor... Eu disse logo que não era possível; eles, porém, insistiram tanto, que...

Ângelo:
— Fez bem em me chamar, irmã Salomé. Faça-os entrar imediatamente. São, com certeza, viajantes que precisam de agasalho!... Que entrem sem demora!... Veja o que há aí para comer. Eles devem estar com fome...

Daí a pouco penetravam na sala dois homens corpulentos, envolvidos em longas capas de pano escuro. Um deles era negro (Simão) e tinha os olhos vermelhos de chorar, mal conseguia falar. O outro (Sinésio), mas direto, sacudiu o chapéu encharcado de chuva.

Sinésio:
— Com licença! Por Deus! Pensei não chegar aqui! Boa-noite, senhor padre!

Ângelo, cumprimentando-os:
— Os senhores são sem dúvida forasteiros e querem agasalho, não é verdade? Vou dar as providências para...

Sinésio:
— Não, senhor padre, muito obrigado... Não queremos agasalho, temos de voltar imediatamente de onde viemos!...

Ângelo:
— Com este tempo?...

Sinésio:
— Vimos pedir a vossa reverendíssima para ir dar a extrema-unção a uma agonizante, que a reclama com insistência.

Ângelo:
— Pois não! Pois não! Estou pronto! Vamos! Onde é?...

Simão:
— Logo na próxima cidade...

Salomé:
— Próxima! Quase uma légua de distância! Isso não pode ser! Não consinto!

Ângelo foi ter com ela e disse-lhe em voz baixa:

Ângelo:
— Cale-se, boa Salomé... Não me queira desviar das minhas obrigações!

Salomé:
— Mas é uma imprudência o que o Senhor quer fazer!... Sair de casa a estas horas e com este tempo!

Ouviu-se um trovão.

Salomé:
— Valha-me Deus! Os caminhos com certeza estarão piores e um carro não conseguira passar!

Simão:
— O carro não conseguiria chegar ao destino... Trouxemos um cavalo para o padre.
Salomé:
— Nem sequer trouxeram um carro! Não! Definitivamente o padre Ângelo não vai, porque eu não consinto!

Ângelo:
— Então, Salomé! Cale-se, minha irmã... O dever não deve olhar maus tempos e perigos mesquinhos...

Salomé:
— Mas, por amor de Deus! Repare que esta loucura vai fazer-lhe muito mal!... Lembre-se de que não está bom de saúde!... Lembre-se de que...

Ângelo:
— E supõe que eu poderia ficar aqui tranqüilo, sabendo que alguém morre, pedindo inutilmente a confissão?...

E voltando-se para os dois homens:

Ângelo:
— Vamos! Vamos, irmãos! Estou às ordens!


Seqüência 27 - Exterior - Noite - Interior de Minas

Vestiu a capa e saiu, acompanhado pelos outros dois. Daí a pouco, três cavaleiros negros cortavam a estrada e entranhavam-se na floresta, galopando na treva, como fantasmas. Pareciam voar nas asas da tempestade. E, a cada relâmpago, os cavalos aterrados relinchavam, acelerando a vertigem do galope. Só pararam defronte da velha e sombria Fazenda. Ângelo apeou-se, e ao transpor o largo portão de pedra, sentiu a alma tolhida por um vago e áspero pressentimento de desgraça. Assustado, entrou na casa.


Seqüência 28 - Interior - Noite - Fazenda centenária do Interior

Em uma desarranjada alcova na velha fazenda, entre mesas cobertas de frascos de remédio e estojos de cirurgia, há uma cama com um cadáver de mulher. Esse cadáver é de Madalena. Tem soltado os cabelos, que lhe correm de um e de outro lado do rosto. Os braços saem-lhe das largas mangas de uma túnica branca, e cruzam-se piedosamente sobre o frio e apagado peito. Ela, de tão serena que tem a fisionomia, parece dormir. Ao lado da cama, enterrado no fundo de uma poltrona e com o rosto escondido no lenço, Esquilo chora silenciosamente; junto dele Mateus, também mudo, contempla o cadáver. Nicodemos, agora trajando um jaleco branco de médico, com ar prostrado e a roupa em desordem, se arruma e prepara-se para sair.

Nicodemos:
— Não me surpreendeu esta morte... Há muito que a previa. Foi um verdadeiro suicídio! Não é impunemente que se leva a vida de extravagâncias, a que esta pobre bailarina se atirara por último... Não há dúvida que queria dar cabo de si!

Ésquilo:
— Pobre louca!... Quantas vezes, nestas últimas orgias da sua vida, a vi ardendo em febre, a tossir, a escarrar sangue, sem ânimo nem de recolher-se à cama. Pobre Madalena!

Mateus:
— Moralmente, coitada! Foi sempre enferma... Sofreu muito! Sofreu muito, porque só desejava o que não podia obter. E eu lhe ofereci todo o meu amor...

Entra Simão, chorando e Sinésio.

Sinésio:
— Pobre Madalena!

Nicodemos:
— Mas o caso é que está morta; e nós, os últimos amigos que sempre estiveram ao seu lado lhe acompanharemos até o fim. Meus amigos precisamos completar a obra dando-lhe um enterro condigno da sua beleza.

E, vendo que acabava de assomar à porta a figura de Ângelo:

Nicodemos:
— Aí está o padre Ângelo!

Ângelo cumprimentou-os com um respeitoso movimento de cabeça, e parou à entrada. Ésquilo foi ter com ele e apertou-lhe a mão.

Ésquilo:
— Já chega tarde, Ângelo... Não encontra uma agonizante, encontra um cadáver...
Nicodemos:
—Expirou há duas horas...

Ângelo, que lentamente se aproximara do cadáver, ao dar com aquela branca figura de mármore estendida sobre a cama, soltou um grito e começou a tremer arquejante e lívido. Esquilo e Mateus acercaram-se dele, enquanto Nicodemos, a certa distância, atentamente o observava. Ângelo, procura esconder a sua tremenda comoção.

Ângelo:
— Não é nada... Não é nada... O espetáculo da morte produz-me sempre este abalo. Não é nada!... Peço-vos que me deixeis um instante só com o cadáver... Vou encomendá-lo a Deus.

Mateus:
- Pois não... Pois não...

Ésquilo:
- Fique à vontade!...

Nicodemos:
- Nós passamos à sala de jantar, mesmo porque temos necessidade de comer alguma coisa. Desde pela manhã que aqui estamos a lutar com a morte. Fique, e desejo que os seus esforços sejam mais proveitosos que os meus. Até logo.

Os três saíram da alcova. Simão e Sinésio os acompanharam. Assim que a porta foi fechada, Ângelo, que aparentava grande tranqüilidade, começou a soluçar, e precipitando-se para junto do cadáver, caiu de joelhos, abraçando-lhe o pescoço e beijando-lhe as mãos.

Ângelo:
— Ah! Posso enfim estreitar-te agora nos meus braços! Já não és uma mulher, és simples matéria inerte! Já não és o fruto proibido! Já não és o ente perigoso que nos leva a sonhar estranhas venturas!... És pó! És nada! Posso agora ao teu cadáver dizer tudo, confessar-lhe o meu pobre amor, o muito que sofri nas longas horas de amargura que arrastei na minha negra solidão! Deus não me castigará por isso! Minhas palavras de amor ficarão...

E, alucinado, acrescentou, como se a morta pudesse ouvi-lo:

Ângelo:
— Sim! Sim! Eu vos amo, eu te adoro, alma que te partiste para sempre! Corpo que vai desaparecer da superfície da terra! Eu te amo, Madalena! Eu te amarei sempre!

E uma vertigem se apoderou dele, e o seu sangue enlouqueceu, acendendo-lhe os sentidos e apagando-lhe naquele instante a luz da razão. Soltou um grito.
Aos seus olhos desvairados, Madalena acabava de erguer-se no leito e abriu as pálpebras, estendendo-lhe os braços com um fugitivo e triste sorriso nos lábios.

Ângelo:
— Meu Deus! Meu Deus! Que significa isto? Ainda vives?... Mas como é que vives, se o teu corpo tem a gelidez da morte?

Madalena:
— Sim, vivo ainda... Um instante apenas, um ligeiro instante; o que baste para encher minha alma com a tua imagem imaculada e santa, antes que eu parta eternamente para as margens desconhecidas que já daqui avisto...

Ângelo:
— Meu Deus!... Perdoa-me! Perdoa-me Madalena!

Madalena:
— Descansa meu anjo, Deus, que é bom pai, não amaldiçoará o nosso amor... E eu te amei tanto, tanto, que Deus perdoou todos os meus crimes só pelo muito que te amei e pelo muito que sofri! Eu vim te pedir um beijo! Dá-me um beijo, e minha alma voará purificada aos pés do Criador! Um só beijo dos teus, tão puro e divino, me resgatará de todos os outros, cínicos e vis, que dei durante a vida inteira!

Ângelo:
— Eu te amo, Madalena!

E seus lábios colaram-se aos lábios dela, no êxtase de um primeiro beijo de amor. Depois, Madalena soltou um fundo e doloroso suspiro e deixou-se cair de novo para trás, outra vez cadáver. Ângelo alucinado passou-lhe então a mão no rosto, sacudiu-a pelos braços, e, sentindo-a de novo tão hirta e tão gelada, soltou um formidável grito de agonia e perdeu os sentidos, caindo com a cabeça sobre o colo da morta. Os que estavam lá fora, depois do grito, abrem a porta do quarto e entram. O primeiro é Nicodemos, apressado corre logo para junto do padre e começa a observá-lo, radiante como se nesse momento acabasse de descobrir um tesouro preciosíssimo. Os outros entram assustados.

Nicodemos (tentando levantar Ângelo):
— Está sem sentidos!... Que achado! Que rico achado!Já não o largo!Ele é meu! Creio que afinal encontrei o caso que eu há tanto tempo procuro!...

Mateus e Ésquilo entreolharam-se interrogando mutuamente qual significado do exame que Nicodemos fazia no pobre Ângelo, em detalhe, do corpo inteiro do santo padre, assim desfalecido sobre um inanimado corpo de mulher. Ângelo, entretanto, continuava tão imóvel, tão pálido e tão morto sobre a morta, que parecia um cadáver perseguindo em silêncio outro cadáver. Nicodemos, ajudado por Mateus e por Ésquilo, tratou de remover Ângelo do fúnebre leito de Madalena, para um divã que havia na alcova. Nicodemos continuava excitado a examinar o corpo inerte de Ângelo...

Nicodemos:
— O cadáver da mulher comunicou-lhe o terrível frio da morte... Vejam como ele tem as faces e as mãos geladas!

Mateus:
— E como está hirto e pálido!... Parece morto...

Nicodemos, lhe ouvido o peito:
— Não! Não está morto!...

Mateus:
— Sente pulsar-lhe o coração?

Nicodemos:
— Não! Não se ouve absolutamente pulsar-lhe o coração, mas afianço-lhe que está vivo.
Mateus:
— É extraordinário!...

Ésquilo:
— Mas, afinal, que tem esse pobre homem?

Nicodemos:
— Nada mais simples, tem um ataque de letargia... Ou coisa que o valha!...

Mateus:
— Ah!

Nicodemos:
— Produto sem dúvida de um profundo abalo nervoso. Quase nada se conhece desse mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções nervosas! Basta dizer-lhes que entre nós a histeria é ainda um mistério e são exploradas pelo clero, que as explica como obra do diabo.

Mateus:
- Ah!

Ésquilo:
— E quanto tempo levará este homem sem dar acordo de si?...

Nicodemos:
— Não sei...

Mateus:
- Ah! Meses?...

Nicodemos:
— Pois não! Há casos observados de prostração cataléptica que duram mais de cem dias...

Nicodemos tira de sua maleta de médico um vidro, coloca um pouco do líquido em um lenço e aproxima-o do rosto de Ângelo.

Nicodemos:
— Não! Não pode ser simples catalepsia. Com a ação do éter, os catalépticos põem-se em movimento e reproduzem inconscientemente, por mímica, a cena que lhes determinou a crise.

Mateus:
— Então é letargia?

Nicodemos:
— Creio que sim... E, se for... Ora! Os senhores não imaginam que sonhos extravagantes, que visões, que fantasias, pode ele experimentar durante esse estado!... Foi isso o que no outro tempo levou muita gente à fogueira; tais coisas viam os histéricos nos seus delírios e tais coisas juraram ter presenciado que os santos inquisidores resolviam queimá-los, convencidos de que os infelizes eram feiticeiros ou tinham o diabo no corpo.

Ésquilo, assustado com tudo aquilo e querendo resolver rápido o fim deste pesadelo, foi então chamar Simão e Sinésio, e ordenou-lhes que carregassem o padre Ângelo para o carro de Nicodemos.



QUARTO MOVIMENTO


Sequencia 29 - Exterior - Noite - Interior de Minas

Assim o padre Ângelo partiu de volta: sob intensa chuva, o corpo molhado, sujo de barro e desmaiado. Assim também ele chegou, agora de carro, à casa da paróquia. O dia já ia amanhecer. Salomé quando viu seu amo entrar em casa, carregado pelos braços por dois homens que o haviam buscado, ela levou as mãos à cabeça e desandou uma terrível imprecação contra todos os que tinham contribuído para fazê-lo sair àquela noite.


Seqüência 30 - Interior - Dia - Cidade do Interior

Salomé acompanha com Nicodemos, rezando e resmungando, os três homens que carregavam Ângelo para o seu quarto.

Salomé:
— Malditos sejam! Vocês que obrigaram esse pobre homem a cometer tamanha loucura! Agora, está aí! Vejam como ele volta! Que digam se eu tinha ou não tinha razão! Vocês não podiam ter feito isso com esse santo padre.

Nicodemos, que entrou logo em seguida na sala, tapou-lhe a boca com a mão, enquanto os outros dois depunham o desfalecido no quarto, sobre o leito.

Nicodemos, para Salomé:
— Não precisa afligir-se! O pároco não está abandonado, nem corre o menor perigo. Sou médico e não o deixarei enquanto ele precisar dos meus socorros. Apenas desejo que a senhora me ajude naquilo que for preciso...

Salomé:
— Faço o que o senhor pedir para salvar esse santo homem. Eu estou às suas ordens doutor...

Nicodemos:
— Bom! Pois então, em primeiro lugar, nada de gritaria, que isso só serve para fazer mal; em segundo: vai a senhora contar-me minuciosamente como tem vivido aqui, até hoje, o nosso vigário, o que tem feito ele, e quais os incômodos que tem sofrido.

Enquanto ela dava conta da existência de Ângelo, Nicodemos escutava-a com os olhos fitos no chão, e só a interrompia para lhe pedir novos esclarecimentos sobre algum ponto que não ficara logo bem explicado.
Depois, tirou a sua carteira, tomou algumas notas a lápis, e em seguida foi assentar-se à cabeceira do leito do doente, consultando o relógio de instante a instante.
O dia amanhecia e a chuva havia passado.
Nicodemos percebeu que Ângelo ia voltar a si. Ergueu-se na ponta dos pés e foi ter com a criada, que dormia a um canto da sala de jantar, sentada num banco de pau.

Nicodemos:
— Olhe! O vigário vai despertar... É preciso ter todo o cuidado com ele, entende?... Observe-o com atenção para me dizer depois o que se passou. Convém que ele me não veja e que não desconfie sequer que eu cá estive... É preciso não deixá-lo perceber que está doente, porque senão ficará pior e talvez perdido... A respeito de tudo que se deu aqui esta noite — nem uma palavra, ouviu? Isto é o principal! A menor palavra a esse respeito pô-lo-ia doido! Todo o cuidado é pouco!

Salomé estava de boca aberta e olhos arregalados, ouvia-o sem pestanejar.

Salomé:
— Mas, e se o Senhor vigário me fizer alguma pergunta a respeito do que se passou à noite?...

Nicodemos:
— Finja que de nada sabe. Assim é preciso, se a senhora não o quer ver doido varrido!

Nicodemos pega a sua mala e sai da sala em direção da porta da rua.

Nicodemos:
- Fica de olho aberto Dona Salomé... Não se descuide, hein?... Até logo. Eu voltarei amanhã.

Nicodemos saiu, andando cautelosamente, como se receasse acordar alguém.
Entra no carro e o dia amanhece. O sol nasce com ele desaparecendo pela estrada lamacenta.
O dia no teatro com os cenógrafos cuidando dos pequenos detalhes para a estréia.
Ângelo, entretanto, acabava nesse momento de voltar a si. Abriu os olhos, passeou-os estranhamente em volta da cama, olha pela janela o dia escurecer, depois tornou a fechá-los, sentou-se na cama, deixou cair de novo à cabeça sobre o travesseiro e começou a dormir, como se continuasse um sono, apenas por um instante interrompido.


Seqüência 31 - Exterior - Anoitecer - Sonho / Cenário

O primeiro sonho de Ângelo.
Floresta. Ele está ao lado de sua fantástica companheira. Os dois cavalgando sorridentes. No céu escuro o relampejar antecede a chuva. Os dois entram em uma floresta para se esconderem do temporal. A floresta fugia em torno deles como duas faixas de treva compacta que se rasgavam de vez em quando ao súbito bruxulear dos relâmpagos. Depois mudava o cenário e eles sentiram-se dentro de uma estreita e profunda galeria toda de pedra, onde o tropel das patas dos cavalos ressoava como um frenético martelar de ferreiros infernais. E afinal acharam-se defronte de um estranho palácio. Os animais estacaram desalentados, soprando forte pela boca e pelas ventas. Noite escura.

Madalena:
— Apeemo-nos!

Ângelo:
— Onde estamos?

Madalena:
— Verás. Caminha comigo...


Seqüência 32 - Interior - Noite - Sonho / Cenários

Galeria de Projeção. Ângelo segue Madalena e penetraram numa extensa e estranha galeria. Ângelo olhava para os lados, para os efeitos de luz que saiam de suas paredes, por entre as quais perpassavam fugitivas sombras silenciosas, que o perturbavam. Às vezes queria parar para ver melhor, mas Madalena arrastava-o pela cintura, segredando-lhe.

Madalena:
— Não podemos ficar aqui um só instante... Vamos! Vamos!

Eles só detiveram o passo ao chegar a um enorme salão. Um salão expressionista: Uma vasta galeria perdia-se ao fundo, multiplicando as colunas a perder de vista. No centro do salão, alguns casais dançam ao som de um quarteto de cordas e de um piano. Mateus, agora envelhecido e com a sua casaca empoeirada, todo vergado sobre os teclados, toca uma belíssima peça musical. Por toda a parte via-se, passeando aos pares, homens e de mulheres.
Os casais sentados nas mesas conversavam alegremente e dançavam as vezes.

Mulher 1:
—É preciso aproveitar bem as horas de que dispomos! A noite vai adiantada!... A aurora não tarda...

Homem 1:
—Bebamos, dançamos e folguemos!

Madalena aproximou-se do grupo, acompanhada por Ângelo.

Homem 2:
— Sejam bem-vindos!

Mulher 2:
— Eis Madalena que volta!

Madalena:
— Sim! Estou novamente com vocês, venho de novo reclamar o meu lugar e a minha taça nos vossos belos e misteriosos festins!

Homem 1:
— Supúnhamos que não voltasses...

Homem 2:
— Mal havias chegado, fugiste logo...

Mulher 2:
— Ausentas-te de nós, tão chorosas e tão tristes!...

Madalena:
— Mas volto alegre como vêem!...

Mulher 1:
— De onde vens?

Madalena:
— Do mundo dos vivos.

Homem 1:
— Da terra?...

Mulher 2:
- Que horror!

Madalena:
— É verdade, amigos, venho da terra. . .

Homem 2:
— E que foste lá fazer?...

Madalena:
— Buscar quem eu amo. Aqui está ele!

E tomando Ângelo pela mão, apresentou-o à roda. Ângelo saudou-os com um amável movimento de cabeça. Mas os casais se calaram, mediram-no com um revesso olhar de desconfiança.

Homem 1:
— Parece um vivo!

Madalena:
— É! Infelizmente é um vivo!... E por isso mesmo mais me custou a trazê-lo comigo...

Mulher 2:
— E como o conseguiste?...

Madalena:
— Indo suplicar ao Criador que ele me fosse confiado durante as horas consagradas ao sono.

Mulher 1:
— E o Criador cedeu ao teu pedido?...

Madalena:
— Não! Cedeu às minhas lágrimas, cedeu à sinceridade do meu desespero, cedeu à eloqüência da minha dor! Quando minha alma, recendendo o aroma do primeiro beijo que recebi de Ângelo, penetrou nos céus e foi arrojar-se aos pés do Criador, todos os seus anjos choraram e uniram as suas vozes celestiais à minha súplica terrestre.

E recuperando o ar de satisfação com que entrara:

Madalena:
— Ah! Mas agora estou resplandecente de alegria! Ângelo, que todas as noites, mal o sol se esconda, serás meu... Só meu, para sempre.

Percebe que Ângelo se intimidava com a presença dos casais.

Madalena:
— Confundem-te os nossos companheiros?... Criança que és tu! Pensas que ainda estás na outra vida! Aqui o amor não é um mistério ou um pecado... Ninguém aqui dissimula o que sente, porque ninguém sabe fingir!... Olha! Não vês além, junto daquelas colunas, como aqueles dois se beijam?... Anda! Beija-me tu também!

Ângelo beija freneticamente a boca, o pescoço, as orelhas e os seios de Madalena.

Ângelo:
— Sim, Madalena, eu te amo, e estou disposto a nunca mais me separar de ti!

Homem 1:
— Bravo! Agora sim, Madalena, já não desconfiamos do teu amante. Ele pode ficar conosco

Mulher 2:
— Foi a tua última paixão?

Madalena:
— Última não — única! Só a este amei na outra vida! Este será o meu amor eterno! Desde a vez primeira em que o vi, minha alma voou logo para ele. Pertenço-lhe!

Ângelo (continuando a beijá-la):
— Minha alma és tu! Sou todo teu! Só a ti amarei sempre!

Homem 2:
— Bravo! Bravo! Ao amor! Ao amor!

E as taças tocaram-se freneticamente.

Homem 1:
— Ao amante de Madalena! Ao primeiro vivo que se animou a penetrar em nosso mundo ideal! Ao temerário Ângelo!

Mulher 1:
— Agora, amigos, continuemos os nossos idílios. Deixemos Madalena em liberdade com o seu formoso amante...

E o grupo dispersou-se, formando-se diversos pares, que se afastaram, segredando palavras de ternura. Madalena passou o braço em Ângelo, e os dois começaram a percorrer o estranho lugar em que se achavam.

Agora eles penetraram nas extensas e infinitas galerias de luz que se desdobrava ao fundo.

Ângelo:
— Onde estamos nós agora, meu amor?... Que estranhas sombras são estas que se cruzam em volta dos nossos passos?...

Madalena:
- Nesta, como na outra vida, cada um de nós procura o lugar que lhe compete.
Achamo-nos agora em uma das seções da grande região das amorosas; esta é a sala das mulheres que viviam em função do seu corpo na outra vida!...

Madalena mostra para seu amante o movimento de sexo que faziam duas sombras. Mas uma geral agitação começava a apoderar-se de todos aqueles casais de sombras que ali estavam. A música do quarteto principiou também a fazer-se nervosa, acelerando o seu andamento, até transformar-se num infernal galope eletrônico de sons e ritmos, que arrebatava o turbilhão das sombras numa vertigem doida. E, freneticamente, puseram-se todos a dançar, aos beijos e aos abraços, passando e perpassando no delírio de uma dança sensual.

Ângelo:
— Que é isto agora?... Por que é que todos se agitam deste modo?

Madalena:
— Ah! É um frenesi de amor...

Madalena suspirou, abraçando Ângelo.

Ângelo:
— Não compreendo...
Madalena:
— É que o Criador, nos seus bons momentos de ternura afaga os mundos, e essa carícia lhes produz lascivos estremecimentos. Neste instante um súbito espasmo sensual percorre toda a natureza. Em cada corpo animado há um sobressalto de amor. Neste instante toda a criação se predispõe a procriar; as feras, as borboletas, os homens, acoitam-se e beijam-se, para garantia da interminável cadeia da vida! Olha! Vê! Todos se afagam! Todos se abraçam!... Todos fazem amor...
Ângelo:
— Sim! Sim! Eu mesmo sinto percorrer-me o corpo um sobressalto estranho!

Madalena atirou-lhe os braços em volta do pescoço, e arrastou-o para o turbilhão das sombras que giravam aos pares. Ângelo enlouquece fazendo sexo com Madalena. E o frenesi chegou ao auge do delírio, e as vozes e os suspiros perderam-se todos num só grito, prolongado e agudo, um ai supremo, que resumia todas as vozes da natureza. Depois a música foi de novo enfraquecendo, e os gemidos foram-se apagando, como as derradeiras notas de uma cantante caravana que se afasta. E um desfalecimento geral empalideceu mais ainda a trêmula chama das projeções, e as sombras dos casais em transe começaram a dissolver-se à fulgurante luz da aurora, que raiava lentamente, atravessando a imensa abóbada fantástica onde as sombras se encontravam.

Ângelo, mal podendo distinguir a sua amada:
— Madalena?

Madalena:
— Adeus... Aí chega o dia!... Separemo-nos!...

Ângelo:
— Quando voltas?

Madalena:
— À noite, sem falta! Às mesmas horas de ontem...

E o murmúrio de um beijo esvoaçou-lhe nos lábios.
E Ângelo, deitado na sua cama, no seu quarto, abriu os olhos. Ergueu-se com um salto. O dia entrava-lhe pelas vidraças da janela. O sino da igreja repicava chamando-o para a missa.


QUINTO MOVIMENTO


Seqüência 33 - Exterior - Dia - São Paulo


Em uma Rua de São Paulo, em frente do teatro, está Santeiro, acompanhado por Nicodemos e Mateus.

Santeiro:
- Pobre Ângelo! Sua alma tinha remorsos daquela noite passada em companhia de Madalena, obrigando-o a percorrer antros sensuais, ao lado de um fantasma, que o ameaçava de voltar todas as noites.

Passa um homem sendo conduzido por uma freira.

Nicodemos:
- Ali está Desidério, desfigurado, passeando com a enfermeira (uma freira).

Mateus:
- Santeiro! Nós temos que acabar com esse livro de uma vez... Como Ângelo conseguira conviver com tamanha loucura?


Seqüência 34 - Interior - Dia - Teatro

Os três entram no Teatro. Ângelo está no palco.

Ângelo:
— Maldita sejas tu, imunda fantasia! Danosa imaginação! Você é agora pó e é lama, e, no entanto, governa ainda os meus sentidos e perturba ainda a minha consciência!...

O teatro está cheio. O público, jovem em sua maioria, acompanha atento a desempenho de Ângelo.

Santeiro fala baixinho no ouvido de Nicodemos.

Santeiro:
- O pó e a lama dos sepulcros não são menos poderosos do que a carne palpitante...

Agora fala ao ouvido de Mateus.

Santeiro:
- Não há mulher que de nós desapareça para sempre, quando nós deveras a amamos!...

No palco Ângelo volta os olhos para o céu, interrogando-o.

Ângelo:
— Meu Deus, teria eu pecado com o sonho desta noite?... Mas o sonho não obedece à vontade de quem sonha, porque, se obedecesse, eu só construiria meus sonhos com as coisas que vos pertencem... Ah! Maldita sejas tu, minha louca e desvairada fantasia...

Ao lado do palco estavam Simão e Sinésio.

Sinésio:
- Se o velho Ozéas estivesse lá, ao lado dele, Ângelo teria ao menos a quem consultar o que devia fazer contra aquele inimigo terrível e traiçoeiro.

Simão:
- Desculpe-me Sinésio, está na hora de tocar o sino...

Sinésio:
- Entretanto, Simão, o sino o chamará para junto do altar. Deveria ele ir?...

Sinésio pega na corda no fundo do palco do teatro para tocar o sino.


Seqüência 35 - Interior - Dia - Cidade do Interior

E o sino tocava, tocava, chamando Ângelo com insistência na Capelinha da cidade. Ângelo preparou-se, saiu do quarto, saiu de casa e dirigiu-se para a capela. Os aldeões o esperavam ajoelhado na nave, contritamente. Alguns tinham ao lado as ferramentas que deviam servir ao seu trabalho desse dia. Mulheres amamentavam os filhos. Ângelo atravessou a igreja, de olhos baixos, e foi-se colocar de joelhos nos degraus do altar. As lágrimas lhe corriam pelas faces. Os sinos repicaram de novo. A igreja fica em silêncio. Ângelo, mais sucumbido ainda, levantou-se, cabisbaixo e concentrado e retirou-se da igreja. Todos se espantaram com seu estado físico. Antes da saída, um cavalheiro saiu-lhe ao encontro e, tirando o chapéu, disse-lhe cortesmente:

Sinésio:
— Perdão, Sr. Ângelo; tenho que desempenhar uma sagrada missão... Sagrada, porque é voto de uma pobre criatura que já não existe...

Ângelo parou para ouvi-lo.

Sinésio:
— Venho até aqui, senhor padre, entregar-lhe um cofre e uma carta, que encontramos no espólio da falecida Madalena... Aqui estão. Trazem o seu nome.

Ângelo:
— O meu nome?...

Simão apresentou-lhe um pacote de pouco mais de um palmo de tamanho, cuidadosamente embrulhado e lacrado. Ângelo, sumamente pálido, estendeu a mão, hesitante.

Simão:
— Leia! ...

Ângelo abriu a carta e leu em voz alta o seguinte:

Ângelo:
- "Respeitável Padre Ângelo — Desejo e peço a Vossa Reverendíssima que se encarregue de distribuir pelos infelizes da sua pobre paróquia, a quantia que acompanha esta carta e que se acha dentro de um cofre. Peço que nas suas orações de santo interceda algumas vezes junto a Deus por minha triste alma de pecadora arrependida e contrita. "Madalena."

Santeiro, off:
- Com a leitura daquelas palavras, que pareciam vir de outro mundo, que pareciam vir do fundo nebuloso dos seus sonhos, Ângelo estremeceu...

Ângelo:
— Não! O meu dever será cumprido! Se mais sofrimentos me estão reservados por isso, tanto melhor! Tanto melhor, porque mais completa será a minha provação!

Todos os fiéis que estavam na igreja, olhavam para a cena que se passava na porta. Ângelo voltando-se tranqüilamente para os outros dois, disse-lhes sem hesitar:

Ângelo:
— A vossa missão, cavalheiros, está terminada. Este dinheiro será discretamente distribuído pelos necessitados, e eu pedirei a Deus pela alma de quem lhes envia a esmola...

Sinésio e Simão fizeram as suas despedidas.
Ângelo foi acompanhá-los até a saída da Igreja. O povo começou a deixar a casa de Deus. Ângelo distribuiu para todos ali parte do dinheiro a pouco recebido. Sozinho fechou a porta da igreja e saiu. Pouco depois, já novamente dentro de sua casa, entra no quarto e coloca o cofre vazio sobre a mesa.

Ângelo, fala com o quadro da Virgem Maria na parede:
- Minha Mãe do Céu, cuida ai em cima de Madalena, que durante a vida foi uma pecadora, pratica na sua última hora uma ação boa, lembrando-se dos desamparados... Mãe tenha piedade de sua alma...

E voltou à mesa, assentou-se, e, tomando o cofre entre as mãos, começou a considerá-lo atentamente. Era um lindo objeto de luxo. Em cima, na tampa, havia o nome de Madalena, cercado de flores e borboletas. Ângelo continuou a admirar o bonito estojo, voltando-o de todos os lados, abrindo-o e fechando-o repetidas vezes. Mas, de repente, estremeceu e repeliu-o, torcendo o rosto para não vê-lo. Tinha descoberto, entre um grupo de anjinhos e cupidos cor-de-rosa, um pequeno oval de meia polegada com um delicadíssimo retrato de Madalena.
Assim, atordoado, pegou o resto do dinheiro que estava no cofre e saiu de casa. Só ao cair do sol tornou à casa, prostrado de fadiga e torturado pelas suas favoritas agonias. Salomé trouxe-lhe o jantar, em que ele, como de costume, mal tocou, para recolher-se logo às suas orações defronte ao retrato da Virgem. Às sete horas deitou-se cansado e adormeceu logo, precipitando-se no sonho, como se acordasse da vida.


Seqüência 36 - Exterior - Noite - Sonho - Cenário

Floresta - Lua cheia.
Madalena esperava por ele.

Madalena:
— Ah! Enfim! Tremia com a idéia de que te demorasses!... Não imaginas como estava impaciente por tornar a ver-te!... A imobilidade a que me vejo condenada durante as horas do dia é para mim indefinível tormento!...

Ângelo:
— Mas eu me não demorei... Adormeci pouco depois do anoitecer... Não seriam mais de sete horas quando...

Madalena:
— Tens razão. Não percamos tempo! Partamos. Os cavalos chamam-nos à montaria...

Ângelo:
— Aonde vamos nós?...

Madalena:
— A um lugar esplêndido. Sigamos!

Montaram e partiram desenfreadamente como na véspera, varando a alma trevosa da noite. Galoparam! Galoparam! No fim de algum tempo, Madalena chamou a si as rédeas do seu cavalo.

Madalena:
— É aqui, chegamos afinal!

Os dois apearam-se.
Achavam-se na estreita garganta de uma sombria serra, onde nenhum rumor de folhas se escutava.

Madalena:
— Andemos...

Ângelo obedeceu.


Seqüência 37 - Exterior - Noite - Cenário

Montanhas e precipícios.

Madalena e Ângelo seguiram o caminho avante por entre um pedregal, cercados por grandes árvores silenciosas, que se perdiam no céu, escondendo-lhes as estrelas. O caminho fazia-se cada vez mais escuro, com mais íngremes penhascos. Era já necessário aos dois ampararem-se um no outro, para que não rolassem juntos por aqueles precipícios. Afinal penetraram num vale fechado entre rochas negras e gigantescas, em torno das quais giravam alguns estranhos urubus, sinistras aves que corvejavam e gemiam, como se a cada instante rasgassem o peito nas arestas da pedra.

Ângelo:
— Que diabo viemos nós buscar aqui?!
Madalena:
— Viemos buscar dinheiro...

Ângelo:
— Dinheiro?... Para que dinheiro?...

Madalena:
— Ora essa! Para tudo! Com dinheiro teremos prestígio nos lugares que vamos percorrer!

E avançado alguns passos, mostrou ao companheiro uma grande pedra encravada no rochedo.

Madalena:
— Vês esta pedra? É a porta das cavernas do Ouro! Nesta misteriosa gruta acha-se encerrada toda a riqueza dos avarentos já mortos; entesoura-se aí todo o ouro desses miseráveis, que em vida sofreram as mais duras privações, para acumular dinheiro, sem proveito de ninguém!

Ângelo:
— E como vieram parar aqui todas essas riquezas?

Madalena:
— Por intermédio dos herdeiros pródigos... Esta esplêndida caverna é o tormento das almas amarelas dos usurários...

Ângelo:
— E ao mesmo tempo é o teu banco... E estas aves, por que rodam em torno da montanha, e por que soltam assim uivos tão tristes?...

Madalena:
— São as almas dos avarentos... Rondam, noite e dia, sem cessar, o tesouro que já não podem possuir e que ainda cobiçam. Atrai-as o cheiro do dinheiro!

E Madalena encaminhou-se para o pedregulho que fechava a gruta, e tocou sobre ele com a sua linda mão cor de neve. A pedra afastou-se e uma fulgurante abertura fez-se defronte dos dois jorrando luz, era um cofre de um banco, cheio de grades e luzes que brilhavam como a boca de uma fornalha. As aves que rondavam a montanha assanharam-se e logo se puseram a rodopiar com mais fúria, multiplicando os uivos e os gemidos.
Ângelo adiantou-se deslumbrado, olhando para dentro daquela esplêndida galeria de ouro e pedras fulgurantes.

Ângelo:
— É maravilhoso! É surpreendente! Oh! Quanta riqueza! Que interminável tesouro!

E olhava, fascinado.

Ângelo:
— Oh! Que deslumbramento! Que grande maravilha!

Madalena, beijando o seu amado:
— Não tão grande como o amor que me inspiraste!

Ângelo não lhe ouviu as palavras, nem recebeu a carícia que ela lhe oferecia. Toda a sua atenção era para a sedutora caverna.

Madalena:
— Não me escuta, meu amor?...

Ele, em vez de responder, perguntou avidamente:

Ângelo:
— Eu também posso levar daqui o ouro que quiser, não é verdade?...

Madalena:
— Não, não podes carregar daqui um grão de ouro... Eu, sim!

Ângelo:
— Mas por quê?
Madalena:
— Porque nunca foste perdulário... Ah! Mas descansa que nada te faltará! Estarei sempre do seu lado, e sempre terás à mão a minha bolsa.

Ângelo abaixou os olhos, empalidecendo. Ficou triste.

Madalena:
— Que tens meu amor? Sentes-te mal?... Vamos! Fala!

Ângelo:
— Nada!...

E cerrou os punhos, rilhando os dentes.

Madalena:
— Que tens tu, Ângelo?...

Ângelo:
— Oh! Cala-te! Terrível sentimento apodera-se do meu coração! Sinto-me ambicioso e ávido de riquezas! Desejo ser o único dono de todos aqueles tesouros que ali estão acumulados! E esta cobiça me faz estalar o cérebro! Tenho o sangue a escaldar! Tenho febre! Tenho febre!

Madalena:
— Empalideces! Ó Ângelo! Não te preocupes com o ouro! Pensa em mim, que sou a tua riqueza!

Ele afastou-a com o braço.

Ângelo:
— Sofro! Sofro neste instante!... Faz-me mal a vista de tanto ouro! Tenho vertigens! Desejava agora ser mil vezes milionário e ter todas as grandezas da terra!

Madalena:
— Ângelo! Ângelo...

Ângelo:
— Oh! Deixa-me! Afinal não passo de um pobre aventureiro, sem o menor prestígio, sem ter sequer um nome de família! Não passo de um miserável... Sem passado e sem futuro, uma sombra de homem, sem esperanças e sem saudades! Não sou ninguém! Ninguém!

Madalena:
— Você é muito e é tudo, meu amor, pelo menos para mim! Que te importam o futuro e o passado se tem o presente, que sou eu?...

Ângelo:
— Não! Não! Quero ir morrer lá dentro, afogado naquele ouro!

E, desprendendo-se dos braços dela, precipitou-se para a caverna. Mas uma resplandecente figura, de longas barbas e cabelos de ouro vivo, cortou-lhe a passagem, colocando-se à entrada da gruta. Era o demônio do Ouro. Vinha cintilante da cabeça aos pés, e o diadema, que lhe guarnecia a fronte, refulgia como um sol. Tudo em volta tornou-se luz. O dia sobrepõe à noite.

Demônio:
— Para trás! E presta toda a atenção ao que vais ouvir!

O ambicioso padre abaixou o rosto e recuou dominado.
O opulento gênio avançou alguns passos e disse, tocando no ombro de Madalena:

Demônio:
— Madalena! Continuas então a vagar durante a noite pelo mundo dos vivos, em vez de jazeres tranqüilamente no seu sono eterno?

Madalena:
— Cala-te, por amor de Deus, que essas palavras desconsolarão o meu amante, se as ouvir...

Demônio:
— Volta de vez para a sua morada!...

Madalena:
— Não! A minha morada é tão fria e eu morri tão moça... Que, à noite, quando os vivos dormem, preciso vir aquecer-me nos braços de Ângelo! Não é assim, meu amor?

Ângelo, não respondeu, nem desviou os olhos das riquezas da caverna.

Demônio:
— E ele te ama?

Madalena:
— Adora-me! E por mim ama a vida e os prazeres.

Demônio:
— Queres dinheiro, já sei! Entra e enche-te à vontade. Leva o que quiseres; tudo o que levares, voltará multiplicado!

Madalena entrou na gruta. Ângelo quis acompanhá-la; o gênio do Ouro deteve-o de novo.
Demônio:
— Espera! Ouve! Que te falta, ambicioso?... Que te falta para ser feliz?... Tens mocidade e dispões da bolsa de Madalena, a quem é permitido fartar as mãos neste inesgotável tesouro...

Ângelo:
— O que me falta? Falta-me tudo! Falta-me o poder absoluto! Queria ser um homem tão poderoso, que a um gesto meu o mundo inteiro se curvasse submisso e escravo!
Demônio:
— Por pouco que desejavas ser Deus?

Ângelo:
— Oh, não! Não me fale em Deus!... Não lhe invejo a grandeza! Queria uma glória mais humana, queria ter as conquistas de César e Alexandre, ligadas ao genial prestígio de Homero e Dante!

O demônio sorriu, mostrando os seus dentes de ouro luminoso, e replicou depois, fechando de novo a fisionomia:

Demônio:
— Não posso satisfazer tanta ambição!... Falaste em Dante!... Faz a tua alma tão grande como a dele, e será o mais desgraçado dos homens... Abre-lhe o cérebro, abre-lhe o peito, abre-lhe os intestinos! Encontrará nessas três regiões do pensamento, do amor e da animalidade, o modelo dos círculos do inferno, que ele traçou no seu lancinante poema. E nesses círculos só uma força há que os iguala e nivela, é a dor! A dor de quem pensa, a dor de quem ama e a dor de quem tem fome! Queres ser feliz? Vive bestialmente! Opõe os teus sentidos ao teu cérebro e ao teu coração! Seja bruto, meu filho! A natureza é um pasto de bestas — espoja-te nele, se quiseres gozar a vida!

O Demônio tirou da cinta um punhal de ouro, que apresentou ao seu interlocutor.

Demônio:
— Guarda esta arma! Defende-te com ela, e vencerás sempre!

Ângelo, apoderando-se do punhal:
— Obrigado! Obrigado! Com esta arma poderei dominar os meus semelhantes?

Demônio:
— Se foras deveras um ambicioso!Mas não o és, pois ao contrário principiarias por tentar vencer a mim próprio, para te apoderares dos meus tesouros. Assim sendo te deixo partir! Não passas de um ambicioso vulgar!

O Demônio recolheu-se à gruta.
Madalena saiu logo em seguida, fechando-se sobre ela o pedregulho da entrada.
Fez-se de novo à noite, uma enorme lua ilumina o vale. Os urubus recomeçaram a perseguir Madalena, atrás do ouro e das pedras preciosas que ela levava consigo.

Madalena:
— Vamo-nos daqui!

Iniciaram a subida da montanha, com os braços na cintura um do outro. Ângelo ia preocupado e triste.

Madalena:
— Que tens?...

Ângelo:
— Nada!

Madalena:
— Tremes meu amigo!...

Ângelo:
— É do frio da noite...


Ao acabar de subir a montanha, passando por incríveis precipícios, ao avistar os dois cavalos, saiu-lhes em frente meia dúzia de salteadores armados, cortando-lhes a passagem. O amante de Madalena mal teve tempo de puxar o seu punhal e passar a amada para trás de si.

Bandido 1:
— Matem o homem e prendam a mulher que a quero para mim!

Mas os primeiros bandoleiros que se precipitaram sobre o viajante, caíram apunhalados, rolando a montanha.

Bandido 1, tirando o revólver:
— Matem-no! Com um milhão de raios!

O tiro partiu, alcançando um dos bandidos que se aproximava de Madalena, enquanto mais dois caíam aos pés de Ângelo.

Bandido 1:
— Ah! Agora somos apenas um homem contra outro homem, pois veremos qual dos dois fica com esta mulher!

E atirou-se de um salto sobre o adversário, que o esperou na ponta da sua arma invencível.

Bandido 1:
— Maldito sejas! Hei de matar-te!

Ângelo:
— Hás de morrer! Nunca mais terás olhos para cobiçar a minha amante!

E, arrancando contra ele, coseu-lhe o peito a punhaladas.
O Bandido passou então a gemer, esvaindo-se em sangue.

Madalena:
— Fujamos!

Ângelo:
— Não! Hei de beber-lhe primeiro o sangue! Hei de beber o sangue de todo aquele que pretender arrancar-te de meus braços!

Ângelo então se vergou sobre o cadáver, colando-lhe os lábios a uma ferida do peito que sangrava.

Madalena:
— Ângelo! Ângelo! Partamos! Olha que aí vem o dia!

Ângelo ergueu então a cabeça e notou que, com efeito, em volta dele tudo começava a esbater-se à luz da aurora. O próprio cadáver, de cuja ferida acabava ele de despregar a boca cheia de sangue, nada mais era do que uma transparente sombra, estendida a seus pés. E as montanhas foram-se dissolvendo, e outros objetos se acentuando por detrás delas.



SEXTO MOVIMENTO


Seqüência 38 - Interior - Dia - Cidade do interior

Casa paroquial.
Ângelo, de olhos bem abertos, foi a pouco e pouco distinguindo e reconhecendo o seu modesto aposento. Através da tenebrosa paisagem que fugia, ele viu surgir lentamente às velhas estantes pejadas de livros santos. E ergueu-se a meio sobre a cama, tateando os olhos e apalpando a enxerga. Levou a mão aos lábios sua boca ainda estava suja de sangue.
Os sinos tocavam lá fora, chamando para a missa. Ângelo levantou-se, abriu a janela, olhou um instante o dia recém-nascido e, em silêncio, preparou-se para sair. A Igreja estava repleta de fieis. Daí a pouco, o seu trêmulo e negro vulto atravessava a capela, e ia cair ajoelhado nos degraus do altar, arquejando, que nem um libertino depois de uma larga noite de dissipação. Seus olhos amortecidos quedavam-se como que indiferentes à própria imagem defronte da qual ia ele celebrar. A sua triste figura, sombria e vacilante, já não era a de um fervoroso crente, a de um sacerdote contrito, mas sim a de um cansado ascético, que não pode nem sabe chorar nem rir. E os fiéis começavam até a murmurar contra ele. Na porta da igreja estão duas beatas.

Primeira mulher:
— Olhe você para aquilo... Veja só se aquilo são modos de estar ao altar!... Parece um ébrio! Não é debalde que todos nós estamos prevenidos contra este esquisitão! ...

Segunda mulher:
— Creio que ele não regula bem da cabeça...

Primeira mulher:
— É pancada, ou finge que o é!... Mas inclino-me a acreditar que, no fim de contas, é nada menos que um grande velhaco... Você não conhece a história que por aí corre a respeito deste santinho com a brejeira viúva?

Segunda mulher:
— Não! Não sei de nada...

Primeira mulher:
— Pois deixe acabar a missa, que eu lhe contarei tudo... Você vai ficar abismada!...

Sermão do padre.
A viuva está sentada na frente das duas mulheres atenta ao sermão e é observada por todos pelo seu jeito e por suas vestimentas extravagantes.

Ângelo:
— A piedade, é flor mimosa e exigente; só pode ser exercida com bom proveito, quando o coração de quem a pratica se acha em absoluto estado de paz, e quando se sente feliz e satisfeito consigo mesmo. Sem a inteira harmonia de todos os atos e de todas as intenções, ninguém pode, meus irmãos, ser piedoso e justo. A piedade é o perfume da moral religiosa, é o lírio branco e místico do amor pelos seus semelhantes. Sede virtuoso convosco mesmo e sede bom para todos sem distinção de ninguém, que a piedade derivará dos vossos atos, como a paz deriva da consciência reta e cônscia do cumprimento dos seus deveres. Ah! Se não fora esse inquebrantável apoio, como seria eu o mais desgraçado dos homens! E, no entanto... Não sou dos mais criminosos...

Ângelo, para espanto de todos deixa o altar e caminha em direção à porta da igreja. Para em frente da viuva e a cumprimenta. Todos ali falam a respeito do padre maluco. Na porta da Igreja estão as duas mulheres.

Segunda mulher:
- Vamos! Conta logo a famosa história da viúva, antes que ele se aproxime...

Primeira mulher:
- Esta viúva é mulherzinha de má conduta. Fala-se, à boca pequena, a respeito dos seus desregramentos amorosos. Dizem que o menino coroinha é filho dele...

Santeiro, off:
- O coração de um homem puro é como o sândalo, que perfuma o machado que o decepa. O coração de Ângelo embalsamava a boca dos caluniadores que o mordiam.

Ângelo sai da Igreja.
Entra na casa Paroquial.
Ângelo encontra-se com a viúva.

Viúva:
- Padre Ângelo! Sou uma pecadora, me perdoe a visita, mas quero lhe confessar a profunda impressão que senti, ouvindo aquelas simples e sinceras palavras sobre a piedade, um clarão cegou-me e arrependida de tudo de ruim que eu sou gostaria de exercer a piedade que tenho em minha pobre alma....

Ângelo:
— Não poderia ninguém desejar melhor ocasião, nem melhor lugar do que este. Aqui neste vale de lágrimas, que clamam socorro. Ide ter com os miseráveis, ide ter com os órfãos sem regaço que os acolha. Procure pelos frios caminhos do desalento e da fome, e encontre arrependimento no lugar do sacrifício, da humildade e do verdadeiro amor.

Santeiro, off:
- A viúva aprendeu o caminho que ensinara o presbítero. Apaixonou-se pelo bem, dedicou-se de corpo e alma a mais praticante e religiosa caridade. Em pouco tempo oferecia com as suas ações belíssimo exemplo de moral e virtude. E todos começaram a respeitá-la. Mas um dia, dois meses depois que a viúva começara a sua reabilitação...


Seqüência 39 - Exterior - Dia - Cidade do interior

Na rua, a viúva chorando e desesperada aproxima-se apressada do padre Ângelo.

Viúva:
- Padre Ângelo! Preciso muito do senhor... Estou grávida... Estou tão envergonhada! ...

Ângelo, ouvindo-lhe a confissão:
— Resigne-se e seja boa mãe de seu filho. Não o desampare! Por coisa nenhuma desta vida o desampare! Sofra com energia as conseqüências do seu erro, aceite as represálias sociais que daí proceda, como elementos novos de sacrifício, e continue na obra da sua reabilitação.

Santeiro, off:
- Esta gravidez é o pretexto da infâmia diabólica que o Padre Ângelo passou a sofrer... Naquela noite de tempestade, em que Salomé o esperava com impaciência, foi à noite em que a viúva deu à luz o filho. A viúva, depois de uma noite de delírio, em que repetia sem cessar o nome do presbítero, faleceu nos braços deste, deixando uma criança órfã. O padre Ângelo resolveu, visto que a falecida não deixava parentes, carregar o órfão com ele para a casa.
Outros padres estavam presentes e cochichavam à socapa, felizes por terem afinal descoberto bom pasto para a sua campanha de difamação. Por tal modo tramaram e conspiraram contra Ângelo, que o público começou a prevenir-se contra ele, e afinal, quando depois viam atravessar lentamente pela estrada o seu triste vulto contemplativo e enfermo, duas velhas beatas segredavam, já em voz brejeira, na janela que dava para a rua, palavras ao vento.

Mulher 1:
— Anda apaixonado! Coitado...

Mulher 2:
- Não se consola da morte da viúva!...

Mulher 1:
- Deus me perdoe! Mas esse padre está ficando maluco com a lembrança do seu impossível amor...

Ângelo seguia em silêncio, indiferentemente, sem distinguir o murmúrio da calúnia que lhe esvoaçava em torno dos pés. Um pouco depois surge à sua frente uma senhora rica com sua pequena filha aleijada.

Senhora:
- Padre Ângelo! É o senhor? Perdão por incomodá-lo... É que me disseram o que senhor opera milagres...

Ângelo:
— Pobre criança!

Senhora:
- Faça o milagre, seu padre! Não somos pobres! Tenho muito dinheiro para ajudar sua paróquia, sou uma mulher de posse...

Ângelo:
- Minha senhora, milagres, só Deus os pode realizar, porque a tanto chega o seu infinito poder... Mas a senhora não deve levar tão longe a vaidade, e se julgar digna de provocá-los ou merecê-los, sem incorrer em desagrado aos olhos do Senhor, que só ama os simples e despretensiosos.

Senhora:
- Mas, Padre! Viemos de longe, deixamos o nosso lar em peregrinação...

Ângelo:
—Ah! Meus irmãos! Quando o lar é abençoado e honesto, não precisa que venham buscar Deus aqui tão longe; Deus irá lá ter espontaneamente e far-se-á lembrado a cada instante. Sejam bons e leais, e Deus será convosco! Não o ofendam, pretendendo que eu faça o que só ele tem o direito de fazer!

Ângelo sai caminhando, e depois de pouco andar, o presbítero ficou muito surpreendido, quando na rua gritaram atrás dele:

Voz de meninos:
— Olha o louco! Olha o louco!

Ângelo recebe nas costas uma pedrada. Voltou-se, abaixou-se e apanhou a pedra. A certa distância havia um grupo de rapazes e raparigas, foi até lá e perguntou se era algum deles que tinha arremessado a pedra. Ninguém respondeu.

Ângelo:
— Meus filhos, aos loucos não devemos apedrejar, que são eles capazes de cair em raiva. Eu tenho visto alguns cachorros aí pela aldeia, a quem até dão pão e dão leite...

E, passando a mão na cabeça de um dos garotos, perguntou-lhe, sem cólera:

Ângelo:
— Por que me atiraste tu a pedra?

Menino:
— Não era para o senhor... Era para aquele cachorro!...

Ângelo:
— Mentes, meu filho; mas ainda que dissesses a verdade serias um pecador, porque é pecado apedrejar os cães... Perdôo-te por esta vez...

Afastou-se, e quando tinha feito algum caminho, ouviu de novo atrás de si:

Meninos:
— Olha o louco! Olha o louco!

Ângelo:
— Talvez eles tenham razão!...

As imagens seguem o texto.

Santeiro, off:
- Ângelo figurava um louco. Na terrível palidez do seu rosto, brilhavam-lhe os olhos sinistramente com desvairada expressão. Seus lábios, que nunca sorriam, denunciavam fria e profunda angústia, que se não traduzia por palavras. Um mistério de sofrimentos havia nas rugas precoces da sua fronte mais branca que o mármore das sepulturas, e os seus gestos eram lentos, e o seu andar vacilante e frouxo, como o de quem caminha lentamente para a morte. Todo ele era apenas uma estranha sombra que atravessava pela terra, sem se comunicar com ela.


Seqüência 40 - Interior - Dia - São Paulo

A cena volta ao teatro.
Na mesa estão novamente todos sentados em volta de Santeiro que acabava de fechar o livro mágico sobre a mesa. O Garçom Sinésio se aproxima com uma rodada de chope. Todos bebem desvairadamente menos Santeiros.

Santeiro:
- O Padre Ângelo sofria muito e não tinha um momento de repouso. Durante o dia era dos seus deveres religiosos e de piedade cristã, e à noite, quando se recolhia à cama, em vez de descanso, tinha para martirizá-lo o tormento de Madalena que vinha buscá-lo ao leito e carregava-lhe o espírito com ela até a manhã seguinte.

Nicodemos:
- Como era que, naquelas duas existências, tão opostas e até tão inimigas, o cavalheiro amante de Madalena convivia com o padre Ângelo?

Santeiro:
- O Cavaleiro amante ria-se intimamente das ingenuidades do padre; ao passo que o padre, em mente, detestava o cavaleiro amante e não lhe perdoava as libertinagens e os crimes.

Mateus:
- Odiavam-se, digladiavam-se, morriam em si mesmo.

Nicodemos:
- Cada qual desejava a extinção do rival...

Santeiro:
- Mas o presbítero, entretanto, a ninguém confiara até aí o segredo do seu espírito, e principiava a habituar-se àquele duplo viver de sacerdote virtuoso e de folião profano.

Nicodemos:
- Ângelo lutava contra a própria sombra...

Ângelo deita-se na cama que está no palco e olhando para a figura da Senhora que está na parede cenográfica adormece.


Seqüência 41 - Exterior - Noite - Cenário

Ângelo viu-se logo com os pés nas brancas areias de uma formosa praia, cercada de misteriosos coqueiros, por entre os quais se destacavam ao luar uma pequena cabana. Madalena sai da cabana, seminua, vindo buscá-lo para um passeio no veleiro ancorado em um pequeno píer. Ele embarcou e sentou-se ao lado dela. O veleiro começou a deslizar indolentemente sobre as águas, onde o céu se espelhava todo azul, borrifado de estrelas e aonde as luzes do barco vinham perder-se em trêmulos reflexos de mil cores. A noite era serena e transparente. Madalena pousou a cabeça no ombro do seu amante.

Madalena, catando:
As águas têm mil lampejos,
Se a brisa cantando vai...
Ó mar! bebei nossos beijos!
Ó brisas! mil sonhos cantais.

O mar tem alma,
É belo o mar!
A noite é calma
Convida a amar!

Vivam os amantes
Cantando aos pares!
Voem distantes
Negros pesares!

Ângelo beija-lhe a boca:

Ângelo, canta:
As águas dormem... Querida!
A lua brilha nos céus
Eu quero beber a vida
Num beijo dos lábios teus!...

O mar tem alma,
É belo o mar!
A noite calma
Convida a amar!

Vivam os amantes
Apaixonados,
Morram as dores
E os vãos cuidados!...

O Veleiro desliza pelas águas calmas do imenso oceano.
Ao longe pode se avistar uma ilha. O veleiro se aproxima e ancora no píer.
Ângelo achou-se defronte de um lindo alpendre, construído à beira-mar e coroado de flores. Madalena puxa do barco o Padre pela mão.

Madalena:
— Saltemos! Nossos amigos nos esperam...

Sobre o cais onde estava o veleiro, um casal deitado, os dois nus, contemplava a lua, ambos quase adormecidos, com a cabeça pousada nos braços um do outro. Um cancioneiro, acompanhado de um violão, canta uma canção.

Cancioneiro:
Tem a vida mil encantos,
Quando a gente sabe amar...
Os gozos são tantos quantos
Murmúrios há no mar...
Deixa-me a boca
Tua beijar!
A vida é pouca para te amar...

E os dois saltaram, galgaram os degraus de mármore, e penetraram num doce e vasto recinto, frouxamente iluminado.
Seqüência 41 - Interior - Noite - Cenário

Ao centro havia um esplêndido tapete desdobrado no chão, com uma ceia repleta de frutas tropicais. Aí, três cavalheiros e três damas, ricamente vestidos, bebiam e comiam, em boa camaradagem, a rir e conversar, e meio abraçados uns com os outros. Mais adiante, três damas e um cavalheiro, assentados sobre macias e felpudas peles, jogavam as cartas, entre beijos e gargalhadas. De outro lado, três moços estendidos por terra, fumavam haxixe em volta de um grande cachimbo arábico, e bebiam vinho cor de topázio, que uma bela rapariga de colo nu lhes derramava nos copos. Ângelo e Madalena observam a cena. Um cavalheiro que estava com duas damas se aproxima dos dois.

Cavalheiro 1:
— Que bela coisa é o prazer!E pensar que há por esse mundo gente que fala em tristezas! As mulheres, as flores, a música, o jogo, o vinho e os bons manjares, eis o nosso elemento de vida! Não é verdade, minha bela, que o prazer é a melhor coisa da vida?...

A dama respondeu-lhe com um longo beijo. Outro cavalheiro no grupo dos jogadores, jogando as cartas na mesa diz para a dama que estava ao seu lado.

Cavalheiro 2:
— Ganhei! Paga!

Dama 1:
— Aqui tens!

A dama oferecendo-lhe os seios, que ele beijou com delícia. E continuaram a jogar. Madalena puxando Ângelo pelo braço, penetra no recinto.

Madalena:
— Entremos!

Ângelo:
— Que lugar encantador!...

E fazendo a todos um rasgado cumprimento:

Ângelo:
— Boa-noite, cavalheiros!

Madalena:
— Vivam rapazes!

Foram correspondidos indolentemente pelos circunstantes.

Cavalheiro 3:
— Boa-noite, gentis namorados. Andais gozando a vida, não é verdade?

Madalena:
— Sim, temos mocidade e dinheiro e queremos gozar, sem parar, a vida !

Cavalheiro 3:
— Sede então bem-vindos! Não poderíeis escolher sítio melhor! Aí tendes o que comer e o que beber. Tomai assento conosco e sereis dos nossos! Bebei e embriagai-vos, caríssimos!

Ângelo e Madalena assentaram-se juntos, e o cavalheiro prosseguiu:

Cavalheiro 3:
— Aqui as horas correm ligeiras e felizes! Escorregam pelos olhos como um bom vinho escorrega pela garganta!...

Ângelo, levando aos lábios a taça que acabara de encher.

Ângelo:
— Mas quem sois vós?...

Cavalheiro 3:
— Somos sectários da religião do prazer: nossa única ambição, nosso único ideal é gozar! A sensualidade é o nosso Deus!

Cavalheiro 2:
— O gozo pelo gozo! Eis aí a nossa divisa!

Cavalheiro 1:
— Não conhecemos outra moral, nem outra filosofia!... O gozo do amor antes de tudo!...

Ângelo:
— Perdão, isso não é amor, é lascívia...

Cavalheiro 3:
— Oh! Nada de sentimentalismo!... Queremos as idéias etéreas... Vivamos pura e exclusivamente para os sentidos! Nada de amores platônicos ou exclusivistas! Nada de ciúmes e nada de egoísmos! Entre nós, a mulher, seja qual for, é um instrumento de prazer, de que cada um se serve como melhor gosta e lhe apraz. Aqui, neste feliz recinto, as mulheres não têm dono; são como as flores do caminho: pertencem ao primeiro que se debruça sobre elas para lhes sorver o aroma...

E derreando-se entre as duas mulheres que estavam ao lado dele, passou-lhes o braço na cintura, beijando-as, uma e depois outra:

Cavalheiro 1:
— Não é verdade, encantadoras amigas, saborosas flores, cujo perfume nos embriaga de prazer... Não é verdade que não guardais egoisticamente, só para um homem, o vinho dos vossos lábios e os tesouros dos vossos corpos adoráveis?

Uma das mulheres respondeu sorrindo:

Dama 1:
— Somos altruístas! Com os encantos que possuímos, poderíamos, por interesse, dar a felicidade a um só homem, mas preferimos dá-la a muitos. É muito mais generoso...

Cavalheiro 1:
— Decerto! A castidade não passa de uma torpe especulação!...

Cavalheiro 2:
— A mulher, só é verdadeiramente sublime quando se dá a todos, sem preferência de nenhum...

Madalena:
— Não concordo convosco!

Ângelo, irritado:
— Degradante filosofia é a vossa, escravos da luxúria! Desvirtuastes o amor, prostituístes a mulher! Amaldiçoais assim a melhor obra de Deus!

Cavalheiro 3:
— Ou do demônio...
Ângelo:
— Não! O demônio inventou o ódio e não o amor. Descobriu a inveja e não a ambição. Descobriu o desespero e não a felicidade. Descobriu a luxúria, que é o desespero da carne, e não o amor, que é o orvalho da alma!

Dama 2:
— Ou estás muito ébrio, ou és um poeta!

Ângelo:
— Não! Sou um homem que ama.

Cavalheiro 2:
— É um sonhador!... Um amante das estrelas!...

Dama 1:
- Mau lugar escolheste tu para os teus idílios sentimentais!...

Cavalheiro 1:
— Segue o teu caminho, visionário! A tua loucura faz-nos pensar, e nós não queremos dar-nos a esse trabalho... Vai-te embora!

Ângelo:
— Enxotam-me?!

Ângelo nervoso puxou um punhado de moedas de ouro, que estava na bolsa de Madalena, e atirou sobre a mesa.

Ângelo:
— Tenho o direito de cá estar! Pago os meus prazeres! E, se alguém há entre vós, que a isso se queira opor, fale, que imediatamente lhe taparei a boca!

Um dos cavalheiros ergueu-se, encaminhou-se tranqüilo para ele e disse-lhe, com os olhos meio fechados pela embriaguez:

Cavalheiro 2:
— Tens o direito de estar aqui, não há dúvida alguma... Mas o que não tens, seu desgraçado, é o direito de incomodar-nos...

Ângelo:
— Desgraçados sois vós, míseros sensualistas!

Cavalheiro 3:
— Deixa-nos! A tua moral enjoa-nos! Se quiseres seguir o nosso exemplo, aí tens o teu copo, é beber até caíres ébrio nos braços da mulher que te ficar mais perto; qualquer destas... Não temos ciúmes!... E se isso não te convém, toma então de novo a teu barco e segue adiante, que trazes ao teu lado uma mulher formosa e não prometemos respeitá-la mais que às outras.

E insidiosamente começa a ser aproximar de Madalena. Ângelo no auge da cólera. Toma a sua frente.

Ângelo:
— Ai daquele que lhe tocar com um dedo!

Madalena interveio, dando-lhe um beijo.

Madalena:
— Acalma-te. A noite é curta meu amor; não vale a pena perdê-la com outra coisa que não seja o prazer!...

E voltando-se para os que estavam à ceia:

Madalena:
— Encham-me a taça, amigos, que a noite ainda é melhor assim regada com o capitoso e dourado vinho!

Cavalheiro 2:
— Tens muito mais espírito que o teu sentimental amante!... E tu és formosa demais para pertencer a um só homem!

Ângelo deu um salto sobre o libertino que acabava de falar, e, desembainhando o seu invencível punhal dourado, exclamou, pondo-lhe a mão esquerda fechada em frente do rosto:

Ângelo:
— Mais uma palavra e arranco-te a alma, miserável!

Madalena:
— Acalmem-se! Acalmem-se! Ângelo tranqüilize o vosso doentio impulso! Tudo aqui são alegria e paz. Bebamos e folguemos, antes que o sol venha de novo tirar-me a carne de cima dos ossos!...

Cavalheiro 3:
— A beleza!... A beleza é uma divindade! E uma divindade deve ser adorada por todos!
Todos, em uníssono:
— Bravo! Bravo! Adoremos a divindade da beleza! À Beleza! À Beleza!

Risos, as taças chocam-se, tilintando. Ângelo desprende-se dos braços de Madalena, salta em meio do banquete derrubando tudo e coloca a sua arma no peito do cavalheiro galanteador.

Ângelo:
— É demais!É demais! Este miserável deve morrer!

Madalena:
— Ângelo! Ângelo!
Ângelo:
— Deixa-me! Quero punir aquele infame! Quero esmagar aquele estúpido libertino!

Houve um geral sobressalto. Ergueram-se todos. As damas empalideceram, soltando gritos de pavor. Ângelo parecia possesso. A lâmina dourada do seu aço reluzia no ar, ameaçadoramente. E ele, sem deter-se um instante no mesmo lugar, varria aos pontapés os estorvos que encontrava nos seus saltos de esgrimista.

Ângelo:
— Venham todos! Venham todos! Cáfila de brutos sensuais! Venham, que os rejeitarei na ponta deste ferro!

Madalena:
— Ângelo! Ângelo!

Todos dos cavalheiros avançam em direção de Ângelo. As damas estão histéricas...

Cavalheiro 1:
— Com sua nova vida pagarás o seu insulto!

Cavalheiro 2:
— Morrerás como um porco!

Cavalheiro 3:
— Diabos levem os intrusos!

Dama 1:
— Morra quem perturba o nosso gozo!

Dama 2:
— Matem-no e lancem o cadáver ao mar!

Cavalheiro 2:
— Mas fiquemos com a mulher, que é bonita!

O combate começou feroz. Os contendores arfavam desesperado, cada qual pela destreza e galhardia do seu adversário e não conseguem agarrá-lo. Ângelo, que já dominava a luta, desembainha a terrível arma, que lhe dera o demônio do Ouro.

Ângelo:
— O meu punhal! Assim o querem?... Assim seja!

E abriu aos pulos para todos os lados, cravando uma punhalada a cada salto.
Um a um, iam caindo todos em volta dele, expirando cada qual, entre gritos de agonia e uivos de cólera. As mulheres rolavam pelo chão, estrebuchando espavoridas, ou jaziam sem sentidos, pálidas e estateladas como cadáveres. Ângelo viu-se afinal senhor do campo, e, ofegando de cansaço, limpou o punhal tinto de sangue nas roupas de uma das suas vítimas.

Madalena:
— Fujamos! Fujamos antes que amanheça!

Ângelo:
— Não! Vamos beber ainda, e esperemos a aurora abraçados os dois sobre esta cama feita para a volúpia. . .

Mas, no momento em que levava aos lábios a taça de vinho, arremessou-a para o lado, soltando um terrível grito de pavor. Defronte dele, com os braços cruzados, os olhos faiscantes e o rosto fulo e sinistro como uma caveira erguia-se o padre Ozéas. Ângelo recuou fulminado. E o pároco, sem descruzar os braços, caminhou para ele, atravessando-o com o seu claro olhar de sacerdote intransigente.

Padre Ozéas:
— Crápula! Assassino! Bêbado! Ladrão! Em que imundo esgoto perdeu tu a tua vergonha e a tua consciência, miserável?Para andares sem pudor a vagabundear ao lado de uma infecta prostituta?

Ângelo:
— E que tens tu com isto, hipócrita?... Acaso vou eu tomar-te contas das ridículas pantomimas que levas a praticar durante a vida... Interrompo porventura a farsa das tuas missas, quando charlataneia o teu irrisório latim e ergues ao ar, dois dedos de vinho e três de obreia, proclamando que é sangue e corpo de Cristo o que vais ingerir... Já fui eu lá dizer-te ao ouvido que isso é uma palhaçada, tão digna de desprezo quanto de lástima?... Já fui eu lá insinuar aos teus devotos que os teus milagres são mentira, como é mentira a tua fé! Como é mentira a tua ciência e como é mentira a tua religião?Já fui?
Ozéas:
- Não me venha filho ingrato a me aborrecer mais com suas infâmias e volta para a tua aldeia, que tens lá quem precise dos teus desvelos e dos teus conselhos. Dá-los ao filho da viúva abandonada!

Ângelo, ouvindo este nome, estremeceu por sua vez.
Sacudiu a cabeça e disse revoltado:

Ângelo:
— Até tu, alma perdida! Até tu finges não compreender a verdade a respeito dessa infeliz criança.

Ozéas:
— Não sou eu quem te acusa; são todos! Nada mais faço do que repetir a voz do povo, que é a voz de Deus!

Ângelo:
- Some-te da minha presença!

Ozéas, diabólico:
— Sim! Mas deixa essa mulher!

Ângelo:
— Por quê? Ah! Compreendo! São os ciúmes que te agitam, hein? Magnífico!

Ozéas:
— Deixa essa mulher, já disse!

Ângelo:
— Queres que a deixe contigo, talvez!...

Ozéas:
— Obedece-me ou eu te tomarei ela à força!

Ângelo:
— Não tentes experimentá-lo, porque ficarias aqui mesmo estendido por terra com estes outros imprudentes que aí estão! Vai-te embora, desgraçado!

Ozéas foi ter com Madalena e tomou-lhe as mãos.

Ozéas:
— Acompanha-me!

Ela olhou para ele, olhou para o outro, e abaixou os olhos, hesitando perplexa.

Ângelo:
— Não! Madalena vens comigo...

Madalena:
— E ele?... Como deixá-lo?... Bem vês que não posso!

Ozéas:
— Aqui! Nos meus braços! Já! Madalena, não dê seus ouvidos a esse embusteiro!

Madalena chegou-se para o lado de Ozéas, obedecendo-o submissa.
Então Ângelo, sem dominar a cólera, atirou-se contra o fantasma do pai, tentando estrangulá-lo. Madalena, percebendo que aquele arrancava o punhal dourado da cinta, apoderou-se do ferro traiçoeiramente e lançou-o ao mar. Ângelo desarmado soltou um formidável grito de desespero e engalfinhou-se mais ainda com Ozéas, rolando ambos ao chão, por entre os cadáveres ensangüentados. Enquanto isso um sino ao longe principiava a badalar, chamando para a missa e a aurora acordava a natureza, cantando um hino de gorjeios e murmúrios de floresta. O infeliz vigário acordou afinal, na vida real, banhado de suor, sufocado e aflito, a debater-se no seu leito com a própria sombra.


SÉTIMO MOVIMENTO:


Seqüência 42 - Exterior - Entardecer - São Paulo

Os trabalhadores saiam das fábricas. Os burocratas dos escritórios. São Paulo voltava para casa. As televisões eram ligadas. As crianças brincam no parque. O sol se esconde no horizonte da cidade agitada. No céu nuvens brancas passam ligeiras.

Santeiro, off:
- A tarde sucumbia lentamente, enchendo a natureza com a sua triste alma lamentosa. As cigarras estridulavam nas sonolentas frondes dos arvoredos com o contínuo gemido do crepúsculo que agonizava. O sol, cansado do seu esplendor, fugia ao longe, cambaleando por uma escadaria de púrpura real.

Seqüência 43 - Interior - Dia - Cidade do Interior

Casa paroquial.
Na modesta sala de jantar da casa do Padre Ângelo, a velha Salomé, com o queixo apoiado à mão e o olhar perdido ao acaso, meneava a cabeça defronte de Nicodemos. Ela parecia deveras desconsolada. O médico tomava notas na sua carteira.

Nicodemos:
— Me fale Salomé! Ele não se queixa de nada?...

Salomé:
— Não, Senhor doutor Nicodemos, não se queixa de nada!... E é isso o que eu estranho!...

Nicodemos:
— Não tem dores de cabeça?... Vertigens, achaques nervosos?...,

Salomé:
- Não se queixa nunca... É outra coisa que eu estranho!...

Nicodemos:
— Come com apetite?...

Salomé:
— Come nadinha! Tão pouco como antes...

Nicodemos:
— Está mais expansivo? Conversa?...

Salomé:
— Está na mesma... E isso também não deixa de causar-me certa estranheza!

Nicodemos:
— Dorme bem?

Salomé:
— Ah! Quanto a isso, acho que até dorme demais! Ultimamente, mal toca às seis horas, já o Vigário está procurando a cama! Só nisto mudou durante a ausência do Senhor doutor... Antes levava às vezes acordado até que horas da madrugada, e agora, é anoitecer, e já ninguém o detém de pé! Deu para isso desde aquela noite que os senhores o levaram...

O médico tomou novas notas e perguntou depois, sem desfitar o olhar de onde o tinha pregado:

Nicodemos:
— Ele anda muito durante o dia? Fatiga-se?...

Salomé:
— Não sai agora de casa senão para os seus deveres.

Nicodemos:
— Não passeia?

Salomé:
— Agora, nunca. Antes ainda o fazia algumas vezes, e quase sempre se demorava por aí, margeando o rio ou percorrendo a serra; mas depois daquela noite, nunca mais fez desses passeios. Mal acaba o que tem de aviar aí por fora, volta logo para casa, e, chegando à noite, deita-se, haja o que houver!

Nicodemos:
— E dorme logo?

Salomé:
— É deitar-se e pegar logo no sono.

Nicodemos:
— E o sono é sossegado? É profundo?

Salomé:
— Pode vir a casa abaixo, que ele não dá por isso! Só desperta na manhã seguinte, ao raiar do dia. E nunca vi procurar a cama com tamanha pressa! Até parece moléstia, Deus me perdoe!

Nicodemos:
— Singular!... Muito singular!

Salomé:
— Nem sei o que me parece aquele modo de dormir!Tenho meus receios de que seja praga! Virgem Santíssima! Há no mundo tanta boca danada, e o Senhor vigário tem sido, nestes últimos tempos, tão perseguido...

Nicodemos:
— Ele não lhe tem contado nada a seu respeito, minha boa amiga?...

Salomé:
— Qual! Nunca esteve comigo tão fechado como agora...

Nicodemos:
— É singular! É singular!... (levantando-se) Os fenômenos que observo neste enfermo, desmentem as minhas experiências já feitas nos hospitais! É um caso singularíssimo de histeria!Seu sistema nervoso está em frangalhos. O vasto mundo dos nervos é tão grande, tão complicado e tão extraordinário, como todo um mundo planetário!Falam em psicologia, falam em intelecto, e não falam nessa coisa ainda hoje sem nome... Ah! Não poder eu viver daqui a cem anos!... Ou não ter talento, gênio, para poder adivinhar o que os outros mais tarde descobrirão. E, diga-me minha boa senhora, ele em que estado acorda?...

Salomé:
— Ora, Senhor doutor... Cada vez mais acabrunhado e abatido... As tais horas de sono do vigário, em vez de lhe darem novas forças e fazê-lo rijo, a modo que o deixam mais prostrado... Acorda cansado, nem que se chegasse de uma viagem muito longa, ou que então largasse naquele instante um serviço muito forte!... Levanta-se da cama quase cambaleando, fatigado como se passasse a noite em claro, barbeia-se caindo de sono, e depois se assenta um bom tempo, descansando. Se eu não vier chamá-lo para a missa, é capaz de ficar aí todo o santo dia, a cismar!...

Nicodemos, enlouquecido:
— Diabo! Diabo! Esta minha ausência foi um transtorno infernal! A nevrose chegou a um ponto em que se torna quase incurável!... Ah! Mas, haja o que houver, carrego-o amanhã mesmo para o novo hospital. Está decidido! E é bem possível que eu, daqui a pouco tempo, esteja apresentando à Academia de Ciências o meu novo livro sobre o grande mundo dos nervos!... Não veio ninguém visitá-lo, além dos devotos?...

Salomé:
— Ninguém, doutor!

Nicodemos:
— Diga-me uma coisa, com franqueza... Nunca descobriu no vigário qualquer inclinação por alguma mulher?...

Salomé:
— Credo, doutor!... Credo, Pai Santíssimo! Pois então o vigário seria lá capaz disso?... Ele é um santo! Valha-me a Senhora dos Aflitos, que até senti um embrulho no estômago!

Nicodemos:
— Não há dúvida! Carrego-o amanhã mesmo para o hospital!... Vou daqui tratar do que me falta para poder levá-lo! Diga-me senhora aonde está o padre agora?

Salomé levanta-se e vai até a janela, volta para segredar apressada ao médico:

Salomé:
— Ele aí vem!...

Nicodemos pôs-se logo em retirada pela porta do fundo, e disse precipitadamente à velha:

Nicodemos:
— Continue a observá-lo. Volto em breve. Segredo, hein?...

Salomé vai abrir a porta. Nicodemos sai. Salomé fecha a porta.

Salomé, falando baixo:
— O vigário estará sofrendo da cabeça, mas este médico, pelos modos, não regula muito melhor que ele...

E abriu a outra porta para Ângelo. Ele entrou mais taciturno e mais sonâmbulo do que nunca. A criada deu-lhe os boas-noites. O infeliz não respondeu.

Salomé, falando baixo:
— Coitado! Como ele está hoje!Nem deu pela minha presença!...

E tomou-lhe o braço, para perguntar-lhe, gritando, como se falasse a um surdo:

Salomé:
— O Senhor vigário quer que eu vá buscar a sua refeição? . . .

E, como ele ainda desta vez não respondesse, a boa velha afastou-se lá para a cozinha, resmungando:

Salomé, falando baixo:
— É melhor mesmo que o doutor leve ele para o hospital para ver se o endireita!...

O Padre Ângelo entra no seu quarto e pára junto à cama.

Ângelo:
— Eis enfim o momento de dormir!... Dormir! Estranho modo de morrer!...Sonhar! Estranho modo de viver!...

E atirou-se na cama.


Seqüência 44 - Interior - Dia - Teatro

Santeiro está sentado na mesa conversando com Ésquilo. Aproxima-se apressado Nicodemos.

Santeiro:
- A intriga dos invejosos vingara finalmente. Ângelo era já considerado louco pelo seu superior; o arcebispo suspendera-lhe as ordens por tempo indefinido e ameaçava de excomunhão todo aquele que fosse a pequena cidade em romaria devota em busca de milagres...

Nicodemos:
- Entretanto, ele parecia indiferente e alheio a tudo isso, e continuava escravo dos seus dolorosos enlevos, como se o seu espírito vivesse com efeito em outro mundo, um mundo só dele conhecido, um mundo longe da terra e longe das suas duras melancolias religiosas. Salomé tinha razão: a coisa única que o preocupava agora, era o sono. Ângelo queria dormir tanto quanto possível, para sonhar muito. O delírio conquistara-o de todo. O sonho vencera a vida real.
Ésquilo:
— Sim! Ângelo vive os seus sonhos e mentirias se dissesses que não os deseja!...

Nicodemos:
- Deseja-os ardentemente; volta deles com a consciência aflita e dolorida, mas durante as longas horas do dia, nada mais faz que chamar pela noite...

Santeiro:
- Sonhar! Será vida o sonho?E por que não? Por que supor que esta é vida verdadeira e a outra não? Por que, se ambas têm a mesma razão de ser? As mesmas dúvidas, as mesmas incertezas! Não são ambas um mistério?

Ésquilo:
- Saberemos por acaso o que éramos antes de nascer e o que seremos depois da morte? De onde viemos? Para onde vamos?

Nicodemos:
- Eis ai o mistério! A vida, qualquer que ela seja. Não será sempre um ligeiro sonho que se esvai entre dois nadas? Sair de um ventre de mulher, para entrar no ventre da terra!Eis tudo o que se sabe!...

Ésquilo:
— Sim! Qual das duas vidas de Ângelo será a verdadeira? Qual das duas será mentira e sonho? Ele poderá afirmar que existe neste palco de sua existência alguma vida?

Entrando desfigurado no palco vem Ângelo. Todos que estavam no teatro olham para ele... Ângelo olha para mesa onde está Santeiros e os outros e passa a andar e a falar como se estivesse perdido.

Ângelo:
— Este meu corpo será, com efeito, meu, ou será, com efeito, o corpo do meu personagem?

Madalena entra pelo palco como se procurasse o parceiro e não pudesse vê-lo.

Madalena:
Ângelo, o seu corpo existe! Eu o estou vendo. Ou tudo isto será ilusão?...

Madalena anda pelo palco e ao encostar-se em Ângelo aperta com força, entre os dedos, a carne do seu braço. Depois se afasta. Ângelo mexe com objetos invisíveis.

Ângelo:
- Todos estes objetos, Madalena, que nos cercam, deixarão de existir com o efeito da luz e a sutileza da sombra.

Madalena, procurando pelo palco:
- Não! Eu não os vejo, eu os apalpo! Eu os sinto com o meu tato! Mas eles não estão aqui! Estão em outro mundo... Não existem!

Madalena sai do palco e, do outro lado, Salomé, entra em cena com um prato de sopa saindo fumaça. Ao ver Ângelo rodando e mexendo nestes objetos invisíveis, pára estaca e olha para ele desconsoladamente.

Salomé:
— Que estará o Senhor vigário a fazer às voltas com aqueles objetos? Parece admirar uma raridade!...

Ângelo:
— Sim, exclamou o pároco. Isto existe!

Uma cadeira torna-se visível. Ângelo quebra então ela no chão.

Salomé:
— Mau! Muito mau! Hoje está para quebrar as coisas!...

E foi ter com ele, carinhosamente, depois de largar sobre a mesa, que se materializava no palco, a bandeja com a sopa.

Salomé:
— Por que não trata de comer alguma coisa antes de recolher-se, Senhor vigário?Olhe que já são quase sete horas!...

Ângelo, despertando de suas reflexões:
— Sete horas? Já?... Sim, sim, vou deitar-me... Preciso dormir. Dormir muito!

Salomé:
— Mas há de primeiro tomar está canja de galinha com pão. Vamos! Venha para a mesa! Assim! Agora beba um trago de vinho!

Ângelo obedecia, como uma criança, sem dizer palavra, tomou umas colheradas e não quis mais.

Salomé:
— Bem, agora pode recolher-se. Boa-noite!

E saiu do palco soltando um fundo suspiro de lástima.


Seqüência 45 - Interior - Entardecer - Cidade do interior

Casa paroquial. Quarto do padre. O presbítero continuou perdido nas suas cismas andando de um lado a outro de seu minúsculo aposento.

Ângelo:
— Sonhar!... Sonhar!... Estarei eu sonhando agora, para daqui a pouco acordar nos braços de Madalena? É claro que não!

Ângelo tomou de cima da mesa o canjirão de vinho. E despedaçou o canjirão contra a parede.

Ângelo:
— Aqui tudo existe... Eu posso quebrar este objeto! Destruí-lo!Não são nada... Aqui eu tenho um corpo real que sente e uma alma que dói.

Ângelo fala para os objetos que estão no seu quarto. Vagarosamente caminha com um sorriso tétrico no rosto e vai se aproximando de sua cama sentando-se nela.

Ângelo:
- Ah! Mas na outra vida palpita-me também o sangue dentro das veias! Na outra vida a minha boca beija, os meus olhos choram, a minha carne treme de prazer e de dor! Na outra vida governo os meus membros, dirijo os meus pensamentos e piso a terra, respiro o ar e como, e bebo, e amo!

Nisto abriu-se surdamente a porta que dava para o interior da casa, e a veneranda figura do velho Ozéas desenhou-se contra a sombra. Vinha abatido parecia muito mais velho e macilento. Afundaram-se-lhe de todo as faces e cavaram-se-lhe os olhos, onde transparecia agora, uma triste luz de mortal desesperança. Imóvel, de braços cruzados sobre o peito, quedou-se a observar em silêncio o espectro do seu discípulo amado. Ângelo, que não dera por ele, continuava a monologar, gesticulando como um louco.

Ângelo:
— Sim... Sim... Por que acreditar que esta miserável existência de padre é a vida real, e a outra não? A outra que, aliás, é tão superior?... Sim! Sim! Ou ambas são vida, ou são ambos os sonhos do Senhor! A única diferença é que lá eu vivo e gozo, ao passo que aqui, apenas choro ou sofro. Ah! Sonho por sonho, prefiro o outro! No outro sou feliz, sou livre, sou um homem como qualquer homem!

Ângelo levanta da cama de um salto e corre para a porta, para os braços de Madalena! Mas frei Ozéas, fê-lo estacar, interpondo-se-lhe na passagem.

Ângelo, assustado:
— Oh! Meu pai?

Ozéas abre os braços, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas longas barbas brancas.

Ozéas:
— Ângelo!

Ângelo:
— Meu pai aqui!

Ozéas:
— Sim! Venho em teu socorro, meu filho!

E Ângelo atirou-se-lhe nos braços, soluçando.
Passado o abalo da primeira impressão, um constrangido silêncio fez-se entre Ângelo e Ozéas. Ângelo tinha os olhos baixos, como um criminoso. Ozéas acompanhava-lhe os menores movimentos, tremulando a cabeça.

Ozéas:
— Sim, meu filho!Venho em teu socorro!... Diz-me como estás e diz-me o que sentes...

Ângelo não ergueu os olhos.

Ângelo:
— Eu?... Nada!... Creio que estou bom...

Ozéas:
— E eu tenho a certeza do contrário, meu pobre Ângelo... Ah! Não tentes me enganar!... Tens, seja qual for, uma preocupação bem grave, que inutilmente procuras esconder aos meus olhos!Há alguns instantes que venho te observando, que acompanho todos os teus movimentos, cheguei mesmo a ouvir muitas palavras do teu monólogo de louco! Ah, sim! Tens uma dor secreta, que eu hei de arrancar do seu corpo e destruí-la, custe o que custar!... Vamos! É melhor que fales com franqueza!

Ângelo:
— Nada! Não tenho nada!... .

Ozéas:
— Negas? Desconheço-te, Ângelo! Já não é o mesmo casto discípulo, que eu cerquei durante vinte anos com a dedicação dos meus desvelos e da minha fé!

Ângelo:
— Creia que se ilude meu pai!...

Ozéas:
— Tu é que me quer iludir, Ângelo... Ah! Mas não o conseguirás! Não suponhas que vim aqui às apalpadelas... Tenho-te acompanhado de longe, desde que a enfermidade me obrigou a separar-me de ti... Exijo que me confesses abertamente a causa deste teu estado atual!

Ângelo:
— Mas que lhe hei eu de dizer?...

Ozéas:
— Fala-me, por exemplo, das conseqüências daquele estranho sobressalto, que te acometeu quando celebravas o seu primeiro sermão... Ainda até hoje não me deste conta disso!...

Ângelo estremeceu, balbuciando alguns sons ininteligíveis.

Ozéas, acrescentando:
— Sim, nunca me confessaste que você foi provocado por uma mulher que se achava na igreja... Por que as lágrimas estão a correr-te pelas faces?... Ah! Eram bem fundados os meus receios de então!... São bem certas as minhas desconfianças de agora!...

Ângelo:
— Desconfianças?... De quê?...
Ozéas:
— De que Madalena te preocupa ainda!...

Ângelo:
— Madalena já não existe...

Ozéas:
— Sim, já não existe para o mundo... Quem sabe, porém, se ela não continuará a existir para a tua imaginação enferma e desvairada?...

Ângelo:
— Por que diz isso, meu pai?...

Ozéas:
— Porque vejo e compreendo que uma idéia fixa te rói o cérebro e devora-te a razão! Quero saber o que é! Fala!

Ângelo:
— Perdoe! Perdoe meu pai!

Ozéas:
— Então fala!

Ângelo:
— Ah! Se soubesse quanto eu sofro!...

Ozéas:
— E não obstante ainda há pouco sustentavas o contrário... Bem vês que tenho razão!...

Ângelo:
— Sim, mas, por amor de Deus, não exija que eu fale!...

Ozéas:
— Ao contrário, quero que me abras o teu coração com toda a confiança, quero que mo despejes em confissão, como o fazias dantes!

Ângelo:
— Mas é tão estranho o que se passa comigo!...

Ozéas:
— Conta-me tudo!

Ângelo:
— Sou um imperdoável pecador!

Ozéas:
— Maior serias se me não falasses com sinceridade!...

Ângelo:
— Sou um desgraçado!...

Ozéas:
— Não tanto, como se eu não estivesse agora ao teu lado, disposto a salvar-te!...

Ângelo:
— Mas o meu crime é traiçoeiro... Só se apodera de mim durante a inconsciência do sonho...

Ozéas fixou-o, e, concentrando a atenção, disse depois surdamente:

Ozéas:
— Continua...

Ângelo:
— Vou dizer-lhe tudo com franqueza!...

E Ângelo olhou para os lados, e acrescentou, abafando a voz:

Ângelo:
— Vou contar-lhe tudo...

Ozéas:
— Fala meu filho...

Ângelo:
— A perturbação que eu senti no dia em que me ordenei, era com efeito causada por uma mulher...

Ozéas:
— Madalena...

Ângelo:
— Sim... Sim... Madalena... Soube logo que esse era o seu nome, em volta de mim na igreja todos o repetiam quando ela me fitava da tribuna...

Ozéas:
— Eu notei. E depois?...

Ângelo:
— Só a tornei a ver naquela noite em que deixei São Paulo... E no dia em que ela veio procurar-me aqui.

Ozéas:
— Sei. Adiante!

Ângelo:
— Sua imagem, porém, nunca mais me saiu da memória, até que, uma noite, sonhei que vinham buscar-me para socorrer um moribundo...

Ozéas:
— Não foi sonho, foi à realidade...

Ângelo:
— A realidade? Então é real que a estreitei nos meus braços?... Então é real que a ressuscitei com os meus beijos?

Ozéas:
— Isso é que já foi sonho, ou melhor, delírio!

Ângelo:
— Meu Deus! Onde começa o sonho?... Onde termina a realidade?... Madalena teria com efeito vindo buscar-me no dia seguinte ao seu enterro?... Eu ter-me-ia transformado em um cavalheiro e ela em formosa dama? Teríamos saído por aí afora, montados em fogosos cavalos, que nos levaram a mundos desconhecidos? Teria eu percorrido com ela todas essas paragens maravilhosas?... Teria eu provado de todos os venenos do prazer e bebido de todos os vinhos do amor?

Ozéas apoderou-se do braço de Ângelo.

Ozéas:
— E ela continua a voltar?...

Ângelo:
— Sim, sim, volta sempre! Ainda não faltou uma só noite até hoje! Mal adormeço, ela vem logo e carrega comigo! É ela a pessoa com quem eu mais convivo neste mundo!

Ozéas:
— Neste, não! No mundo da tua loucura!

Ângelo:
— E por que devo acreditar que este é o verdadeiro e o outro não? Ambos me ocupam longas horas o espírito, ambos palpitam de sentimento e de verdade, ambos têm as suas consolações e os seus desgostos!

Ozéas:
— Mas, meu filho não te lembra que cresceste a meu lado, que viveste sempre comigo?...

Ângelo:
— Também no outro mundo tenho reminiscências de uma vida inteira. Lembro-me do colégio, das férias passadas com parentes, dos afagos de meus pais... Sim! Porque lá não sou um miserável enjeitado... Tenho família e tenho amigos... E' uma vida completa e perfeita! Esta outra existência obscura, de pároco de aldeia, apresenta-se-me então ao espírito como um sonho extravagante e ridículo!...

Ozéas:
— É preciso que Madalena nunca mais te apareça!

Ângelo:
—Creio que só com a morte deixarei de vê-la! E, ainda assim, quem sabe? Quem sabe se Madalena não virá ter comigo, quando esse outro sono me adormecer para sempre? E quem poderá afirmar que eu vivo? Quem me dirá que não sou como ela, um pobre espírito errante, um espectro, uma sombra, condenado a nunca repousar?...

Ozéas:
— Cala-te, louco! Não a verás hoje!

Ângelo:
— Ela virá logo que eu adormeça!...

Ozéas:
— Hoje não dormirás!

Ângelo:
— Ela me espera!...

Ozéas:
— Desgraçado! Já não és senhor de tua vontade? Acaso negociaste tua alma?...

Ângelo:
— Não, meu pai, minha vontade é a sua... Minha alma pertence a Deus!

Ozéas:
— Pois então, obedece-me e acompanha-me!

Ângelo:
— Aonde vamos?...

Ozéas:
— Depois o saberás. Ajoelha-te e pede ao Criador que te proteja!

O discípulo obedeceu. E o velho acrescentou, erguendo os braços e os olhos para o céu:

Ozéas:
— Ó meu Deus! Ó senhor misericordioso! Não nos desampareis nesta terrível excursão que vamos empreender.



MOVIMENTO FINAL


Seqüência 47 - Exterior - Noite - São Paulo

Ozéas, munido de uma lanterna e de uma mochila, saí de carro.
Fim de tarde bonita e frouxamente iluminado pelo sol de abril.
Os dois religiosos passam de carro pela estrada movimentada.
Pareciam dois espectros apagados pelos reflexos da luz do sol e das paisagens no parabrisa do velho veículo.
Já era noite quando chegam a uma grande centro urbano e depois ao grande cemitério da cidade de São Paulo. Ozéas parou o carro no portão de ferro. No fundo do cemitério Ozéas conversa com dois coveiros. Volta ao carro e chama então o padre Ângelo...

Ozéas:
— É aqui, meu filho... Venha, depressa!

Ângelo nada respondeu. Cães ladravam de pescoço estendido provocando o céu.
As estrelas bruxuleavam tristemente no azul da abóbada misteriosa.
Não se ouvia o pio de uma ave noturna.
Ângelo saiu do carro e encostou-se ao sinistro muro da casa dos mortos.Ozéas chegou perto e ele respirou fundo. Eles entram no cemitério acompanhado de um coveiro que com a lanterna mostra o caminho a seguir.

Ângelo:
— O que viemos fazer aqui?...

Ozéas:
— Entremos...

Santeiro:
- Era um lugar bem triste aquele, com a sua dura simetria de túmulos enfileirados, branquejando ao luar que nascia na noite de São Paulo. Canteiros de flores, mais fúnebres que as sepulturas, pareciam dizer na muda linguagem das perpétuas e das margaridas, todo o segredo das dores e das saudades, que ali gemeram junto aos que fugiram para debaixo da terra.

Ozéas e Ângelo puseram-se a andar vagarosamente por entre os mausoléus.
O cemitério era grande. Ozéas acompanhado do coveiro e de Ângelo chega a certo sepulcro, coberto por uma lousa de mármore, deu luz à sua lanterna e alumiou a lápida. Ozéas empurra Ângelo para perto do túmulo.

Ozéas:
— Lê!...

Ângelo:
— Ah!

Pela luz tremula da lanterna podia-se ler na lápide funerária: "Madalena".

Ozéas:
— Aqui jaz o que dela resta... Você está vendo! Ela está morta e enterrada...

E depois de um silêncio.

Ozéas:
— Levanta a lousa!

Ângelo:
— Profanar uma sepultura!... Eu? Não! Nunca!

Ozéas:
—Sim, é preciso! Obedece!

Ângelo:
— Meu pai!

Ozéas:
— Obedece!

O presbítero hesitou ainda.

Ozéas:
— Obedece, ou eu te amaldiçoarei para sempre! Insistiu Ozéas.

Ângelo abaixou a cabeça e começou a levantar com a mão a pedra sepulcral.
Conseguiu-o no fim de algum esforço.

Ozéas:
— Agora pega a enxada e começa a cavar retirando o que está lá dentro...

O pároco voltou o rosto, exclamando:

Ângelo:
— Oh, não! Não! Por amor de Deus!

Ozéas tomou a enxada, e retirou com ela uma caveira de dentro da sepultura.
Limpou-a ao hábito e levou-a até aos olhos do discípulo, dizendo.

Ozéas:
— Vê! Vê bem!...

Ângelo:
— Uma caveira!
Ozéas:
— Sim! Uma caveira! É tudo que resta da beleza da tua Madalena!... A terra comeu-lhe os olhos, o nariz, a boca, as faces cor-de-rosa... Só ficaram os dentes, para se rirem de ti, louco!

Ângelo tomou a caveira entre as mãos, e ficou a contemplá-la, abstrato e mudo.
Ozéas chegou-se mais para ele e disse-lhe, avizinhando a boca do seu ouvido e abafando a voz como quem conspira.

Ozéas:
— Vê bem!... É uma caveira vulgar... Confunde-se com todas as outras!... Foram-se-lhe os encantos... Foram-se os cabelos com os seus perfumes sensuais, os lábios com os seus sorrisos sedutores, os olhos com as suas chamas de amor!...

Ângelo:
— Meu Deus!

Ozéas:
— Restam apenas ossos. É tudo que dela resta neste mundo!. O mais que suponhas que exista, o mais que vejas nos teus sonhos libertinos, é loucura! Compreende bem, Ângelo! — Loucura!

Ângelo:
— Meu Deus! Meu Deus! Valei-me!

Ele deixa a caveira cair no túmulo e baqueou no chão, abraçando-se à lápida.
Ozéas precipitou-se sobre ele, para socorrê-lo.

Ozéas:
— Ângelo! Ânimo! Ânimo, meu filho!

O pároco não deu acordo de si. E o pobre velho apalpou-lhe o rosto e o coração.

Ozéas:
— Perdeu os sentidos! Valha-me Deus! Valha-me Deus! Como lhe hei de valer? Se eu tivesse ao menos um pouco de água! A sua fronte escalda de febre!
Ah! Na capela! Talvez encontre o guarda!...

E, procurando pela água, afastou-se, deixando Ângelo abraçado à lousa de Madalena. Ângelo ergueu a cabeça ao fim de algum tempo e contraiu-se todo, ajoelhando-se na terra. Todo ele tremia. Aos seus olhos desvairados, um terrível espetáculo se patenteava naquele instante. Madalena surgia da cova, lentamente. Vinha toda de branco, no seu longo roupão funerário, em que ele a vira estendida no seu leito de morta, quando, louco de amor a estreitara nos braços. Tinha os cabelos soltos sobre as espáduas, os olhos repressivos e tristes, a boca entreaberta por um sorriso amargo, mostrando a embaciada pérola dos dentes.

Ângelo:
— Ah! Madalena, você voltou! ...

E um singular diálogo travou-se entre os dois:

Madalena:
— Para que vieste profanar esta sepultura?...

Ângelo respondeu, sempre de joelhos e sem despregar os olhos dela:

Ângelo:
— Para me convencer de que não és mais do que vil despojo! Para me convencer de que és pó e lodo!...

Madalena:
— E que lucraste com isso?...

Ângelo:
— A razão, porque tu me enlouqueces... Tu és a minha loucura, sedutor demônio!

Madalena:
— Loucura! E conheces, por acaso, alguma coisa no mundo que não seja delírio e loucura?... O que é a tua virtude senão loucura?... O que é a tua ciência?... O que é a tua religião?...Tudo isso é insânia!... Tudo isso é a febre dos doidos!... É o desvairar dos loucos!...

Ângelo arrastou-se para ela, exclamando suplicante:

Ângelo:
— Então não me deixes viver outra vida senão esta em que eu a tenho ao meu lado, ao alcance dos meus lábios!... Leva-me, como nas outras noites, para os teus palácios encantados, para as tuas grutas misteriosas, levam-me para onde quiseres. Eu serei o teu pajem! O teu amante! O teu donzel!

Madalena:
— É tarde!

Ângelo:
— Não! Não é tarde! Venha a minha espada de cavalheiro! Venha o meu fogoso ginete de longas crinas flutuantes! Arranca-me desta abominável mortalha preta, em que me envolveram desde o berço! Arranca-me desta vida estúpida, e dá-me a outra ideal e sonhadora! Vamos! Quero ser de novo um aventureiro, quero as minhas paixões, quero o meu punhal, quero a formosa mulher que palpitava de amor nos meus braços! Vamos! Vamos, minha Madalena, meu doce enlevo, poesia e sonho de minha vida, encanto da minha alma! Vamos! atende-me!

Madalena:
— É tarde!

Ângelo:
— Ah! Não... Não!... Mil vezes não!...

Madalena:
— Ouve desgraçado! O amor que te votei era tão grande, que ninguém jamais amou tanto sobre a terra!... Tão grande, que eu consegui, das invioláveis profundezas deste mundo dos mortos, criar um novo modo de viver contigo! Dei-te a vida ideal do sonho, onde não terias nunca as tristes misérias dessa outra vida em que vegetas!... Mas tu, insensato! Acabas de destruir o que eu com tamanho amor criei para a tua felicidade... Que lucraste em desfazer a nossa vida fantástica?... Que vantagens tu descobriste nessa miserável existência que te resta agora, tão carregada de tédios e mesquinhas necessidades?... Onde melhor poderíamos gozar a suprema ventura de nos amarmos, de que em um mundo ideal inventado pelo nosso próprio amor?...

Ângelo:
— Sim! Sim!... Eu quero viver eternamente contigo! Eu quero
continuar a ser uma sombra! Eu quero sonhar!

Madalena:
— É tarde! Mira-te na tua obra!...

E o seu rosto começou a fazer-se pálido, e mais pálido, até tornar-se cor de osso, e os seus olhos foram-se esfumando, a cobrirem-se de sombra, até que nada mais eram do que dois negros buracos apagados, e seu nariz desapareceu, e os seus cabelos abandonaram o crânio amarelento e nu, e os seus lábios sumiram-se, deixando a descoberto os dentes já sem brilho. E a caveira ressurgiu afinal, sorrindo para Ângelo, pavorosamente. E por debaixo do alvo roupão mortuário, foi, pouco a pouco, fugindo a carne que o enchia. Desfizeram-se as voluptuosas curvas dos quadris e do colo. A túnica engelhou bamba como um sudário sobre um esqueleto. E Ângelo ouviu um sinistro cascalhar de ossos, e, soltando um grito, viu cair e sumir-se o desfeito espectro na aberta e tenebrosa boca do sepulcro. Debruçou-se sobre a cova, olhando lá para dentro. Nada mais viu do que um punhado de lodo. Ozéas acudira de carreira, e lançou-se para ele com os braços abertos.

Ozéas:
— Que tens meu filho? Que tens?... Fala!

Ângelo pôs-se de pé, passou a mão pela fronte, e disse amargamente:

Ângelo:
— Tudo acabou... Nunca mais, nunca mais a verei!...

Ozéas:
— Por Deus que nunca mais você há de vê-la! Os céus ouviram minhas súplicas e acabam de restituir-te à razão!...

Ângelo olhou em torno de si, como um alucinado que em verdade recuperasse naquele instante do entendimento.

Ângelo:
— Ah!... Eu estava louco!... Sim... Agora compreendo... Era tudo desvario...
Era tudo ilusão!...

E calou-se durante algum tempo.

Ângelo:
— Sonhos!... Sonhos!... Sim... Eu existo... Eu sou o seminarista Ângelo... O pupilo de frei Ozéas... A criança encontrada à porta do convento de São Francisco de Paula... Aquele amor, toda aquela felicidade, era sonho, era loucura!...

E apontando para dentro da sepultura:

Ângelo:
— Isto aqui... É a realidade... Isto aqui é a verdadeira vida!...

Ozéas:
— Sim!

Ângelo tomou as mãos de Ozéas.

Ângelo:
— Então, nunca mais a verei?... Nunca mais a estreitarei nos meus braços, peito a peito, lábio a lábio?

Ozéas:
— Não!

Ângelo:
— Então, nesta vida real, nunca mais terei um raio de amor, que aqueça minha alma?...

Ozéas:
— Tens o amor de Deus!

Ângelo:
— Deus?... E onde está ele, que nunca o vi, apesar de lhe ter dedicado a vida inteira?...

Ozéas ergueu o braço, apontando para o céu.

Ângelo:
— Lá? Mas lá é tão longe, tão longe... Que minha voz, nem o meu entendimento alcançam!...

Ozéas:
— Mas alcança tua alma!...

Ângelo:
— Não! Minha alma é irmã gêmea do meu corpo, e ambos são filhos da terra... Sou um homem!

Ozéas estremeceu ouvindo estas palavras, e bradou com energia:

Ozéas:
— Não és um homem, és um padre!

Ângelo fitou-o, aproximando o seu rosto do dele.

Ângelo:
— E quem me tirou o direito de ser homem?... Quem me obrigou a ser padre?... Qual bárbara violência foi essa de me trocarem um direito por uma responsabilidade?...Quem foi que cometeu este crime?

E, segurando violentamente o braço de Ozéas, bramiu com os lábios trêmulos e os olhos ferrados sobre ele.

Ângelo:
— Ah! Ah! Foste tu, bem sei!... Encontraste-me pequenino, desamparado, sem ter nada no mundo, nem mãe ao menos e carregaste-me para a tua sombria furna, tal a fera carrega com mesquinhez à presa. Encerraste-me naquele tenebroso convento e aí tu me deformaste a alma como um saltimbanco ao corpo do enjeitado que lhe cai nas garras!

E, cruzando os braços, interrogou com uma voz terrível, perfilado defronte de Ozéas:

Ângelo:
— E quem te deu o direito de deformar minha alma?! Quem te deu o direito de fazer de mim um padre?! Quem?! Responde!

Ozéas:
— As minhas sagradas convicções, as minhas crenças!...

Ângelo sorriu ironicamente.

Ângelo:
— Crenças!... Convicções!... E tudo isso de que me serve agora?!... Eu quero viver! Eu quero o quinhão de vida a que tenho direito! Restitui-me a minha mocidade, o calor do meu sangue, o meu talento! Entrega-me o que me roubaste, ladrão!

Ozéas deixou-se cair de joelhos e abriu os braços, volvendo para o céu os olho lacrimosos.

Ozéas:
— Ó meu Deus! Ó meu Deus! Piedade para ele! Socorrei-o! Iluminai-o com a vossa divina graça!...

Ângelo:
— É tarde!... A sombra de Madalena bem o disse!... É tarde, roubador de crianças, salteador de almas! Já nada tenho a perder, porque me roubaste afinal a última ilusão! Nada mais me resta a fazer neste mundo de nojentas misérias! Sê maldito! Desgraçado!...

E sai correndo pelo cemitério. Mas Ozéas alcançou-o e prendeu-o nos braços.

Ozéas:
— Meu filho! Meu filho! Atende-me, por amor de Deus!

Ângelo:
— Não sou teu filho, não sou nada, sou um padre! Deixei de ser um vivo entre os mortos, e agora sou um morto entre os vivos!

Ozéas:
— Que vais fazer Ângelo!

Ângelo:
— Completar a tua obra, bandido!

Ozéas:
—- Não! Não te matarás!

E engalfinhados numa tremenda luta, rolaram até a sepultura de Madalena.

Ozéas:
— Não hás de morrer!

Ângelo:
— Pois então morrerás tu!

Exclamou Ângelo, ofegante, pondo o joelho sobre o peito de Ozéas e dando-lhe com um pedaço de mármore desgrudado de um túmulo um forte murro no rosto. O sangue e a terra mancharam a sua roupa branca. O seu rosto ilumina-se de uma estranha luz, está diferente, limpo e novamente jovial. Com as forças redobradas, levanta-se por de cima de Ozéas, limpa da roupa da terra santa e sai do cemitério para rua onde estava o carro estacionado. Passa por ele. E agora, como um rapaz comum, repetindo a cena inicial, caminha pela rua escura encravada na noite tendo ao fundo as infinitas luzes cintilantes da grande São Paulo. Por entre os prédios os relâmpagos iluminam a cidade em uma noite chuvosa.

FIM

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